Os catadores e eu

Um convite à reflexão. Em resumo, é o que instiga a procura do cinema documental. Mais ainda nos documentários de Agnès Varda que não se exime de também refletir sobre os temas e, principalmente, imagens de suas obras. Os catadores e eu, como o próprio título original sugere, é uma incursão em sua própria atividade. Um relógio sem ponteiros, que não marca o tempo, achado no lixo, adorna o escritório da cineasta. 

Assim, Agnès Varda talvez tenha se relacionado com outros catadores e expandiu suas reflexões. Descobriu e expôs o incrível mundo do desperdício, toneladas de alimentos jogados fora diariamente que servem para poucos catadores como alimento diário. 

O ponto de partida e sustentação do documentário é a associação com a arte, pintores célebres que retrataram mulheres catadoras que chegavam após a colheita. Na França, é uma atividade reconhecida por lei, os catadores podem entrar em propriedades privadas e recolher o que sobrou das colheitas. Um advogado catador anda com o código penal em mãos para deixar claro a todos seu direito. Dois outros personagens do documentário catam por ativismo político, têm emprego, mas se alimentam do que acham nas lixeiras. Artistas fazem sua arte com objetos recolhidos nas ruas, assim como Agnès Varda que, com a câmera na mão (deslumbrada com o poder das pequenas câmeras digitais) recolhe as imagens. 

O documentário é também uma reflexão sobre o cinema, como nas belas imagens de caminhões na estrada, enquadrados pelas mãos da diretora. Alguns ficam visíveis entre seus dedos, outros ela esmaga ao fechar a mão. São os caminhões que infestam as estradas, transportando mercadorias que serão consumidas, descartadas, catadas, em um ciclo interminável que separa a sociedade. 

Os catadores e eu (Les glaneurs et la glaneuse, França, 2000), de Agnès Varda. 

Cronos

Guilhermo Del Toro é essencialmente um cineasta das imagens. Trata seus filmes com um apuro visual e técnico de encher os olhos. Em Cronos, seu primeiro filme, essa marca já está lá, como a anunciar um dos grandes estetas do cinema, consagrado posteriormente em obras como HellboyA colina escarlateA forma da água e, acima de tudo, O labirinto do fauno

Cronos abre com a história de um alquimista espanhol que, fugindo da inquisição, vai parar em Vera Cruz, México. Sua vida é dedicada a pesquisar a imortalidade, isso resulta em um invento chamado Cronos, dispositivo mecânico similar a um inseto. Corta para os anos 90, um estranho é encontrado morto após o desabamento de um prédio. É o alquimista. Corta para uma loja de antiguidades onde estão Jesus Grill e sua neta, a silenciosa Aurora.

A história em si não apresenta muitas surpresas. É a releitura de Del Toro do mito do vampiro. Jesus Grill encontra e experimenta o dispositivo. Ele passa por mutações físicas e psicológicas, seu corpo cada vez mais necessitado do Cronos, enquanto sua mente e seus sentimentos relutam. A ação da trama acontece com a entrada de Angel, espécie de capanga do velho e rico Dieter de la Guarda, moribundo que passa a vida procurando pelo dispositivo do alquimista.

Os conflitos psicológicos do protagonista remetem a dois outros grandes filmes sobre imortalidade deste período: Highlander e Sede de viver

A direção de fotografia de Guillermo Navarro imprime à trama um misto de fascínio, tristeza e repulsa, afinal, cenas escatológicas também marcam o cinema de Del Toro. Atenção para as belas sequências da pulsante engrenagem dentro do inseto dourado e para a sequência do banheiro durante a festa de virada de ano. Poucas vezes o cinema de vampiro foi tão impactante.

Cronos (México, 1993), de Guillermo Del Toro. Com Federico Luppi (Jesus Grill), Claudio Brook (Dieter de la Guarda), Ron Pearlman (Angel), Aurora (Tamra Shanath). 

A tomada do poder por Luís 14

Em 1962, diante de uma plateia de repórteres em Roma, Roberto Rossellini proclamou: “O cinema está morto.” A frase sintetiza a desilusão do cineasta com a modernidade já anunciada nos novos cinemas dos anos 60 e com um público cada vez mais desinteressado de histórias realistas, contadas de forma simples e direta, como bem ensinou Rossellini a gerações de cinéfilos. 

No entanto, Rossellini estava longe de abandonar a arte audiovisual e se tornou um dos primeiros cineastas consagrados a aderir à ainda imberbe, em questões dramatúrgicas, TV. O depoimento de seu filho, Enzo Rossellini, também diretor, aponta por que o consagrado mestre do neo realismo italiano se voltou para a pequenina tela que invadiu as salas de famílias do mundo inteiro: 

“Ele não era exatamente um apaixonado pela televisão, ele tinha uma utopia: salvar o mundo por meio da televisão. Ele pensava que um dos maiores males da humanidade, além das doenças que já mataram milhões de pessoas, da fome e da pobreza, era a ignorância. Em sua visão utópica, a televisão poderia libertar a humanidade da ignorância, e ele pensava que, se o homem se libertasse da ignorância, isso o libertaria também da fome, do desemprego e de todos os outros males. Por isso, concebeu usar esse poderoso meio não apenas para dar informação, mas para comunicar cultura. Ele pensava que sua tarefa como diretor maduro era poder fazer filmes baseados na história como fonte de conhecimento, e poder descrever o mundo por meio da televisão.”

A tomada do poder por Luis 14 é uma das obras deste projeto. Roberto Rossellini apresentou a ideia à TV francesa que aprovou, condicionando que as filmagens deveriam se desenvolver em exatos 20 dias, com recursos financeiros mínimos. Um desafio que remonta à experiência de Rossellini com suas obras primas do neo-realismo, imaginem rodar um filme que exige primorosa reconstituição de época em apenas 20 dias. 

Pois assim foi feito. A narrativa acompanha o rei sol quando assume o pleno poder a partir da morte do Cardeal Mazarin. Nesse ponto, já se percebe a marca de Rossellini, a abertura é uma longa exposição de Mazarin à beira da morte, o homem mais poderoso da França agoniza frente ao espectador, com reconstituição tão realista que médicos chegam a cheirar as fezes do cardeal em busca da doença que o acomete. “O que é importante? Descobrir os homens tal como são.” – Roberto Rossellini. 

O diretor italiano expõe sem pudor, quase com crueldade, o cotidiano da realeza francesa, personificada em um soberano que baseou seu reinado na imponência: terminou o palácio de Versalhes, estimulou o culto à aparência através de figurinos requintados, obrigava seus súditos mais próximos a presenciarem seus banquetes, incluindo o café da manhã na cama, como se fosse um espetáculo teatral. “O que se vê é a dominação pela moda,, o desfilo cotidiano de mortos-vivos levados pelas aparências e uma etiqueta inventada do nada. De certa forma, é o filme definitivo sobre Luís 14.” – Hervé Dumont. 

Outro ponto que merece destaque na empreitada televisiva de Roberto Rossellini é explorar a não-interpretação dos atores. Luís 14 é interpretado pelo dramaturgo e diretor de teatro Jean-Marie Patte, naquele momento sem nenhuma experiência como ator. As técnicas de Rossellini na direção de atores sem experiência, como os amadores do neo-realismo, era colar frases do texto em pontos específicos do cenário, ou usar o teleprompter, exigindo que os atores lessem os diálogos ao invés de interpretá-los. 

“Rossellini não faz seus atores atuarem, não os faz expressar esse ou aquele sentimento; ele apenas os faz estar na frente da câmera. Nesse tipo de mise en scène, a localização no espaço dos personagens, o jeito como eles falam e se movem é mais importante do que os sentimentos mostrados em seus rostos, e muito mais importante do que o que eles dizem.” – André Bazin. 

A tomada do poder por Luís 14 (La prise du pouvoir par Louis XIV, França, 1966), de Roberto Rossellini. Com Jean-Marie Patte (Luís 14), Katharina Renn (Ana de Áustria), César Silvagni (Cardeal Mazarin), Raymond Jourdan (Colbert), Pierre Barrat (Fouquet), Joelle Laugeois (Maria Teresa). 

Referência: A tomada do poder por Luís 14. Um filme inspirado na vida de Luís 14. Coleção Folha Grandes Biografias no Cinema. Cássio Starling Carlos, Pedro Maciel Guimarães, Euclides Santos Mendes. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2016