Colo

A adolescente Marta vive os conflitos típicos da idade, agravados por um fato: o pai da jovem está desempregado, a mãe busca o sustento da família trabalhando em dois empregos. Outra adolescente, Júlia, está grávida e vai passar um tempo na casa de Marta. 

A película de Teresa Villaverde compõe o sensível painel do atual cinema europeu que aborda as questões do desemprego, do subemprego, das burocracias do estado que não sabe lidar com seus cidadãos em busca de auxílio depois que perdem as condições de sustento. A gradativa desestruturação da família de Marta reflete a realidade cruel provocada pelo sistema econômico e político. O pai passa pela crise às vezes de forma violenta, outras entregue à resignação de sua condição. A mãe testa seus limites até à explosão, incapaz de continuar lidando com a obrigatoriedade de se entregar a jornadas exaustivas de trabalho. Marta se descobre em meio ao caos, sua caminhada no final do filme é o retrato da solidão que atinge de forma avassaladora os jovens nessa sociedade cada vez mais desestruturada. 

Colo (Portugal, 2017), de Teresa Villaverde. Com João Pedro Vaz (Pai), Alice Albergaria Borges (Marta), Beatriz Batarda (Mãe), Clara Jost (Júlia).

Asako I & II

Em Osaka, Asako vê Baku em uma exposição fotográfica. Na saída, Baku se aproxima, os dois conversam e trocam um beijo nos lábios. É o início de uma paixão que dura seis meses, pois Baku desaparece misteriosamente. Dois anos e meio depois, Asako trabalha em uma cafeteria em Tóquio. Quando leva café para a empresa em frente, pensa rever Baku, agora um jovem executivo. 

O premiado diretor de Drive my car trabalha em Asako I & II com uma narrativa que remete às tramas do duplo, das traições de mentes perturbadas por traumas do passado, claramente uma homenagem a Um corpo que cai, de Alfred Hitchcock. Questões como a busca dos jovens pela arte em uma sociedade massacrada pela exposição midiática também pontuam a trama. É uma história de amor, ou da resignação que o amor exige quando não se concretiza da forma que tanto desejamos.  

Asako I & II (Netemo Sametemo, Japão, 2018), de Ryusuke Hamaguchi. Com Masahiro Higashide (Baku/Ryohei), Erika Karata (Asako), Koji Seto (Hirakawa), Sairi Itoh, Misako Tanaka. 

Abandono

Maria entrou no quarto e deixou a toalha cair. Gesto para o flagrante da câmara de cinema se ela fosse alguns anos mais jovem. Talvez até seu marido, estendido na cama, a desvendasse com olhar antigo.

Ela enxugou os cabelos, os olhos cruzando o espelho, o reflexo gasto do corpo. Escolheu na penteadeira um hidratante ainda cheio até a borda. Apoiou a perna na beirada da cama, começou a passar o creme, as mãos deslizando dos pés as coxas. Vai-e-vem, vai-e-vem, como lembranças. Às vezes, olhava seu marido, estendido na embriaguez, cheiro de suor e álcool.

Cheirou alguns perfumes esquecidos. Este – cheiro bom de fim de tarde na praia, aquele, leve cheiro de dama da noite ao cair do dia. Perfumou-se no pescoço, braços, seios, barriga. Cheiro de praia, como na noite de hotel em Ipanema – tantos e tantos anos. Ipanema das praias de cinema, dos sonhos. Ipanema. Pés descalços tocando pela primeira vez areias de mar. A primeira vez.

Abriu o guarda-roupa. Será que essa calça ainda me serve? Essa blusa me caía tão bem! Esse vestido estava na moda quando… como é mesmo o nome daquela atriz? daquele filme?

Há mais de dez anos não vou ao cinema. A vida, a vida, tarde da noite, sozinha em casa, esperando o marido voltar dos bares. A vida.

Maria ligou o secador de cabelos. O barulho despertou o marido. Sonolento, ele notou a mulher pelo espelho. Os cabelos ao vento do secador, lábios ganhando aos poucos a cor do batom. Observou-a vestindo a calcinha, uma blusa branca, uma calça leve de verão, sandálias deixando os pés à mostra.

Ainda com cabelos úmidos, ela pegou a pequena bolsa: colocou um frasco de perfume, batom, espelhinho, contou algum dinheiro, saiu do quarto. Pela janela, o marido a viu subindo a escada da rua. Onde você vai? Maria observou a casa, o olhar desceu pelo telhado colonial, passou pelas paredes recém-pintadas de amarelo, parou nas janelas de madeira, no verniz ainda brilhando que ela fez questão de passar. Me deixa dar o toque final, pedira ao pintor, me deixa depois de tanto tempo terminar com tudo isso, uma pincelada, a marca no tempo. O tempo.

Onde você vai a essa hora? Repetiu o marido parado na janela, mãos espalhando a ressaca do rosto. Não sei. Talvez eu vá tomar um chopp com uma amiga. Talvez ao cinema. Talvez andar de carro por aí.