O beco do pesadelo

O filme abre com uma sequência enigmática: Stanton Carlisle joga um cadáver no buraco aberto no assoalho de uma sala e, a seguir, coloca fogo na casa. De longe, no campo, observa as chamas tomando conta do horizonte. 

Após o prólogo, a narrativa é dividida em duas partes. Na primeira, Stanton consegue trabalho em um circo, cujos espetáculos variam dos tradicionais números de mágica a exibições de aberrações, como o selvagem que mata e come uma galinha. Stanton se torna amante da vidente Zeena e aprende com seu marido a arte da adivinhação através das cartas. Ele se apaixona pela jovem Molly, também artista do circo, e os dois fogem.

Na segunda parte, Stanton é um vidente de sucesso, rico, ganha a vida em apresentações em clubes e fazendo apresentações particulares para a elite endinheirada. O vigarista começa uma perigosa relação amorosa com Lilith, advogada ambiciosa e inescrupulosa que frequenta a alta sociedade. 

A galeria de personagens circenses da primeira parte da narrativa é o grande destaque do filme. Pessoas que transitam entre a arte e a marginalidade, cometendo atos violentos e grotescos em favor da sobrevivência mambembe, enquanto vivem na ilusão deste mundo miserável, porém, glamouroso. O final surpreendente une as duas partes, demonstrando o apego de Guillermo Del Toro às características básicas da narrativa clássica: transformação de personagem, estrutura circular, a jornada física e psicológica do protagonista por um mundo repleto de obstáculos cruéis e, como revela o final, desumano. 

O beco do pesadelo (Nightmare alley, EUA, 2021), de Guillermo Del Toro. Com Bradley Cooper (Stanton Carlisle), Cate Blanchett (Lilith Ritter), Toni Collette (Zeena), Willem Dafoe (Clem), Richard Jenkins (Ezra Grindle), Rooney Mara (Molly), Ron Perlman (Bruno), Mark Povinelli (Major). 

A mulher de um espião

Kobe, Japão, 1940. Yusaku, um próspero comerciante de tecidos ajuda um de seus clientes ingleses, preso por suspeita de espionagem, a sair da cadeia. Aparentemente, ele não se preocupa com questões políticas, tem por hobby produzir filmes caseiros de gênero protagonizados por Satoko, sua esposa. Os dois vivem um casamento apaixonado e feliz. Tudo muda quando Yusaku volta de uma viagem de negócios à Manchúria, junto com uma mulher que, pouco depois, é assassinada. 

A virada do roteiro transforma A mulher de um espião em uma complexa narrativa envolvendo crimes biológicos perpetrados pelos militares. A trama é baseada em fatos históricos: os militares japoneses mantiveram na Manchúria a Unidade 731, centro de pesquisa médica que praticava experimentos biológicos em prisioneiros de guerra. 

Quando confronta seu marido sobre a viagem e seu possível caso de infidelidade, Satoko assume o protagonismo da trama. A transformação de sua personagem é o grande destaque deste thriller que mistura erotismo, romance, espionagem e atos bárbaros de oficiais nacionalistas. A surpresa próxima ao final traz ainda uma referência às possibilidades narrativas do cinema. 

A mulher de um espião (Supai no tsuma, Japão, 2020), de Kiyoshi Kurosawa. Com Yu Aoi (Satoko Fukuhara), Issey Takanashi (Yusaku Fukuhara), Ryota Bando (Fumio), Masahiro Higashide (Taiji). 

Força maior

O casal Tomas e Ebba passa férias em uma estação de esqui junto com seus dois filhos, as crianças Vera e Harry. Durante um almoço no restaurante do hotel, uma pequena avalanche provoca correria no restaurante. Passado o susto, a relação do casal entra em uma espiral de crise, provocada pela atitude de Tomas durante a avalanche. 

O diretor Ruben Ostlund já conquistou por duas vezes a Palma de Ouro em Cannes com The square: a arte da discórdia (2017) e Triangle of sadness (2022). O apuro visual e os planos lentos, marca do diretor sueco, são o destaque de Força maior, uma profunda e, por vezes, divertida, discussão a respeito da masculinidade. Os longos silêncios durante as práticas de esqui nas montanhas, fotografadas em uma perturbadora claridade, reforçam a sensação de progressiva crise depressiva que acompanha Tomas e Vera.

Força maior (Turist, Suécia, 2014 ), de Ruben Ostlund. Com Johannes Bah Kuhnke (Tomas), Lisa Loven Kongsli (Ebba), Clara Wettergren (Vera), Vincent Wettergren (Harry), Kristofer Hivju (Matts), Fanni Metelius (Fanny). 

Diva: paixão perigosa

No início dos anos 80, jovens cineastas franceses realizaram alguns filmes que foram classificados, pejorativamente a princípio, como Cinéma du Look. A expressão foi cunhada pelo crítico Raphael Bassan, analisando que os filmes priorizavam o estilo em detrimento do conteúdo. Os principais expoentes dessa espécie de movimento transitório foram Jean-Jacques Beineix (Diva), Luc Besson (Metrô) e Leo Carax (Garoto conhece garota). 

Diva é o primeiro filme a apresentar as principais características do movimento. A trama acompanha o carteiro Jules, fascinado pela cantora lírica Cynthia Hawkins. Ela se recusa a gravar discos, mas Jules faz uma gravação clandestina durante um show que circula em versões piratas. Um assassinato de uma garota de programa nas ruas de Paris coloca Jules em confronto direto com uma gangue de tráfico de mulheres chefiada pelo comissário de polícia (antes de morrer, a vítima esconde uma fita cassete com revelações na moto do jovem carteiro).

O visual extravagante da película é responsável por ambientações deslumbrantes, como a garagem onde Jules mora e o reduto dos marginais Serge e Abba. A pop art está presente em grande parte da narrativa, acompanhando os personagens pelas ruas e metrôs da cidade. Preste atenção na ousada sequência de perseguição: um policial persegue Jules, primeiro pelas ruas da cidade, depois pelas estações do metrô, uma elaborada combinação de movimentos incluindo carro, moto e corridas a pé. Outro ponto de destaque da narrativa é a caricatural dupla de assassinos, sempre de óculos escuros e cigarros nas mães, exalando um charme artificial. 

Diva: paixão perigosa (Diva, França, 1981), de Jean-Jacques Beineix. Com Frédéric Andréi (Jules), Wihelmenia Fernandez (Cynthia Hawkins), Richard Bohringer (Serge), Thuy An Luu (Abba), Jacques Fabbri (Comissário Jean).

A história começou à noite

Durante a viagem em um navio de luxo, a ex-modelo Irene Vail chega ao limite no relacionamento com seu marido, Bruce Vail. Bruce, um milionário empreendedor da área de construção de navios, não aceita o fim do seu casamento e planeja uma armadilha para acusar sua esposa de adultério. A armadilha acontece no hotel onde Irene está hospedada, mas Paul, hóspede do quarto ao lado, intervém, evitando o flagrante. É o início do relacionamento amoroso entre Irene e Paul, um charmoso maitre de restaurantes parisienses.

A película traz a marca da narrativa visual do diretor Frank Borzage, herdada de seus filmes realizados durante o cinema mudo. Borzage é considerado um dos grandes realizadores de dramas românticos do cinema. Ele negava o realismo, utilizando requintados closes, efeitos de transições como fusões sobre fusões em momentos decisivos da trama, carregando a narrativa visual e sonora (trilhas) de fortes apelos emocionais. Adeus às armas (1932), seu maior sucesso comercial, é famoso pela cena final: um close agressivo no casal de protagonistas, interpretados por Gary Cooper e Helen Hays, no momento da morte da enfermeira.

O roteiro de A história começou à noite apresenta uma particularidade: pouco antes do início das filmagens, a trama foi reescrita, pois Borzage resolveu que o final do filme seria durante o naufrágio de um navio de luxo, referência à tragédia do Titanic. Assim, o personagem de Colin Clive, no roteiro um milionário sem referências à origem de sua fortuna, foi recriado para um famoso construtor de navios. 

Outra particularidade do filme diz respeito também ao ator Colin Clive. Ele sofria com uma doença fatal durante as filmagens. Duas semanas após o lançamento da obra, Clive cometeu suicídio, assim como seu personagem no final de A história começou à noite.

 A história começou à noite (History is made at night, EUA, 1937), de Frank Borzage. Com Charles Boyer (Paul), Jean Arthur (Irene Vail), Leo Carillo (Cesare), Colin Clive (Bruce Vail).

A besta humana

O início do filme é uma bela homenagem ao trem de ferro, meio de transporte que revolucionou a história da humanidade. Jacques Lantier e Pecqueux, dois maquinistas, comandam o trem, trocando gestos, assobios e olhares que só eles entendem, enquanto manejam os equipamentos. A poesia visual se completa com imagens das rodas, dos trilhos, pontos de vistas subjetivos da máquina que segue imponente sua jornada. 

A besta humana, baseado em romance de Emile Zola, é a história do maquinista Jacques Lantier, que sofre com impulsos psicológicos imprevisíveis e violentos.  Lantier afirma, em determinado momento, que carrega a herança, espécie de praga,  de anos e anos de consumo abusivo de álcool por seus familiares diretos. 

Um caso de paixão coloca em prova essa tendência assassina do protagonista. A jovem e bela Severine é casada com Roubaud, chefe da estação. Roubaud descobre que sua mulher foi amante de Grandmorin, um velho e rico industrial da cidade de Le Havre (que tem um histórico de estupro de menores). A bordo de um trem para Paris, o chefe da estação, com ajuda de Severine, mata o industrial. Lantier, também a bordo desse trem, se torna a única testemunha do crime. No entanto, se apaixona por Severine e os dois vivem um tórrido romance. 

O diretor Jean-Renoir, considerado por muitos precursor do neorrealismo italiano, trabalha em A besta humana com elementos que antecipam também o film noir americano: as cenas noturnas na estação de trem, com forte suspense psicológico, os protagonistas que transitam pelas noites em constantes conflitos e, principalmente, a femme fatale – a sedutora Severine que impulsiona os instintos cruéis de seus amantes. 

A besta humana (La bête humaine, França, 1938), de Jean Renoir. Com Jean Gabin (Jacques Lantier), Julien Carette (Pecqueux), Simone Simon (Séverine), Fernand Ledoux (Roubaud), Jacques Berlioz (Grandmorin).