Manobras ousadas

– Vamos pedalar? – Ana Paula levantou o olhar da revista, afastou os cabelos da testa, pensou durante alguns segundos, o suficiente para que meus olhos se prendessem nos seus incompreensíveis olhos negros. Um dia pareciam implorar pelo beijo, no outro assumiam a ternura da adolescência que não pede nada mais do que carinho e amizade. 

– Não sei. Estou desanimada. – indolente, pensei. Eu começava a percorrer o caminho da leitura e descobria certas palavras. Bela e indolente.

– A gente vai perto. Só aqui pelo bairro.

– Tá bom. Vou pegar a bicicleta.

No início da década de 70, o asfalto começou a dominar algumas ruas dos bairros de Belo Horizonte. Trouxeram junto, para uma geração de meninos, o fascínio da velocidade. A gente se aventurava em manobras ousadas de bicicleta e skate que costumavam terminar em peles arranhadas ou ossos quebrados.

– Você não vai correr, vai? – gritou Ana Paula quando viu a minha bicicleta se distanciar um pouco. Parei de pedalar, pressionei levemente o freio até que a Monareta de minha amiga me alcançou. Andamos emparelhados por alguns quarteirões, as bicicletas no embalo da gravidade.

– Vamos andar no estacionamento da universidade.

– Não, é perigoso. Ainda está cheio de pedrinhas soltas. E eu já vi o que vocês fazem no estacionamento.

– Vamos. Você não precisa andar.

O estacionamento ainda estava em construção. Começava a partir do início dos prédios das salas de aula, em declive até o nível da rua. A descida começava forte e diminuía aos poucos até terminar num platô reto do lado direito, visto da rua. Uma imensa área livre, sem qualquer tipo de obstáculo, pois os carros ainda não podiam ocupar o estacionamento.

Deixei Ana Paula sentada no alto do estacionamento, na sombra de uma árvore. Ah, essa necessidade infantil, que nos persegue a vida inteira, de impressionar as mulheres que desejamos. Deixei a bicicleta descer sem pedalar e soltei os braços da bicicleta, abrindo-os em cruz, a velocidade aumentando cada vez mais, o vento batendo no rosto. Aos poucos, o atrito das pedras nos pneus e a diminuição do declive reduziam a velocidade.

A segunda manobra era o orgulho dos líderes da minha turma. Deixei novamente a bicicleta descer solta. Quando a senti em velocidade razoável, firmei as mãos no guidom, coloquei os pés na garupa e num movimento repentino, feito com agilidade e firmeza, fiquei em pé na garupa da bicicleta, os braços abertos novamente em cruz. Eu controlava os movimentos da bicicleta com o balanço do corpo. Pendia para um lado, para o outro, evitando que a bicicleta se desgovernasse, o mais leve desvio poderia provocar acidente grave.

Quase no fim do declive, quando a bicicleta já estava em velocidade perigosa, inclinei levemente o corpo para o lado esquerdo. Este movimento fez a bicicleta virar, percorrendo um grande arco até se posicionar no sentido contrário. A velocidade diminuiu aos poucos, pois ela começou a subir. Antes da bicicleta parar por completo, curvei o corpo até apoiar as mãos no guidom e me sentei no cilindro. Olhei para cima: Ana Paula estava em pé, ao lado da árvore.

– Você é doido. Vamos embora.

– Estou acostumado a fazer isso.

– É loucura. Vamos embora.

Saímos do estacionamento, entramos na rua em frente. Ana Paula pedalava de leve, silenciosa. Emparelhamos, ela fez gesto de jogar a bicicleta em cima da minha. Ela andava devagar pela rua plana. A tarde estava naquela hora em que as lâmpadas dos postes acendem automaticamente, confundidas pela penumbra. Ana Paula olhou para mim – aqueles olhos confusos.

Ela soltou a mão direita da bicicleta e a esticou em minha direção. Fiz o mesmo gesto com a mão esquerda, tentando tocá-la. Nossos dedos começaram a se roçar, toque intermitente, separados pelo movimento das bicicletas, voltando a se tocar, separados novamente pelo movimento das bicicletas, voltando a se tocar.

Tempos modernos

A ideia de Tempos modernos (Modern times, EUA, 1936) apareceu para Chaplin durante viagem à Europa. Eram anos conturbados, profunda crise social e moral, regimes fascistas ascendendo ao poder,  resultando na Segunda Grande Guerra. Nos EUA, a depressão também deixou marcas: miséria, desemprego, falta de habitação, fome, desesperança.

A premissa do filme seria a automação trazendo o progresso, mas a alto custo social. Chaplin colocou na trama temas polêmicos para os americanos, como fome, desemprego, greves trabalhistas. Esta abordagem faz de Tempos modernos filme obrigatório sobre questões sociais. No entanto, um aspecto particular fala mais alto quando faço revisão do filme: a despedida de Carlitos.

Charles Chaplin concebeu o roteiro com diálogos para seu antológico personagem. À medida que o processo avançava, percebeu que Carlitos estava irremediavelmente associado ao fascínio do cinema mudo, à pantomima, à mímica, à eterna caracterização do personagem sem voz. O diretor decidiu então por uma ousada estrutura.

As interferências sonoras acontecem somente em momentos nos quais a automação exerce seu poder sobre o trabalhador. As únicas vozes ouvidas no filme são a do diretor da fábrica, exigindo mais e mais agilidade de seus operários, e a voz saída do aparelho de som, espécie de manual para explicar o funcionamento de uma máquina.

A montagem sonora produz som de máquinas reverberado, a trilha sonora pontua dramaticamente o conflito homem/máquina que resulta no enlouquecimento de Carlitos apertando os parafusos, maravilha visual, simbolismo cinematográfico que fica na memória de todo espectador. Associada a esta ousadia sonora, o filme reforça a narrativa do cinema mudo: gags, intertítulos, interpretação caricatural dos atores na busca do diálogo visual com o público. Este paradoxo narrativo faz de Tempos modernos também contundente crítica ao cinema sonoro, processo que Chaplin evitou a todo custo – seu primeiro filme inteiramente sonoro é O grande ditador, de 1940.

Nas sequências finais de Tempos modernos, a crítica ao sonoro ganha um toque de gênio. Carlitos é contratado como garçom/cantor de um bar. A cena é conhecida por todo amante da cinefilia. No momento de cantar, os punhos de sua camisa, onde ele havia anotado a letra da música, se desprendem. Ele não sabe o que fazer pois não se lembra da letra. A jovem (Paulette Godard) diz “Cante, não importam as palavras”.

Carlitos então improvisa a canção em dialeto ininteligível, interpretando visualmente a letra. Pela primeira vez, o espectador ouve a voz do personagem que aprendeu a amar filme a filme… mas não entende nada do que ele diz.

“O grande dilema em que o cinema sonoro havia metido Chaplin se resolve nesta maravilhosa cena, onde a arte da pantomima se conjuga com a letra de uma canção cujo idioma o vagabundo inventa naquele exato instante. Não importa o ‘que diz’ – do mesmo modo que não importa o conteúdo daquele alemão inventado, no discurso inicial de Hynkel em O Grande Ditador -, mas ‘como’ o diz, e, sobretudo, o fato de que seja capaz de sintonizar com o público. Quase uma década depois do surgimento do cinema sonoro, Chaplin decidia fazer Carlitos falar. Carlitos foi um caso excepcional. Quando Chaplin o obrigou a cantar – depois de manter, por um período bastante longo, sua total fidelidade a um cinema mudo já definitivamente extinto -, Carlitos foi ferido mortalmente. O pequeno vagabundo, tal como havia sido concebido até então, despediu-se do público e do cinema na última cena de Tempos Modernos.”  

É destas cenas irretratáveis em palavras: Carlitos se afastando de costas pela estrada deserta, mãos entrelaçadas com a mulher que ama, o característico andar bamboleante, as calças largas acompanhando a dança das pernas, o chapéu coco, a bengala. Um fade e Carlitos desaparece?…

Referência: Os grandes filmes de Chaplin. Wanderley de Souza Gomes Jr. (editor.). Barcelona: Editora Altaya, 1997.

Alô, Dolly!

Dolly Levi chega a Yonkers para arranjar o casamento do rico comerciante Horace Vandergelder. A ideia é casar Horace com Irene Molloy, dona de uma loja de chapéus em Nova York. O  que Horace não sabe é que a casamenteira tem outros planos e, durante um dia e uma noite em Nova York, série de encontros vai mudar os rumos do arranjo.

Com direção de Gene Kelly, Alô, Dolly! é exuberante do início ao fim. Os figurinos, a direção de arte, as cores, tudo tem o tom extravagante, principalmente as sequências dentro do restaurante de luxo. Destaques para a coreografia dos garçons na dança que começa na cozinha e invade o salão; para a participação de Louis Armstrong na bela canção título; para Barbra Streisand com figurinos adoravelmente cafonas.

Alô, Dolly! (Hello, Dolly!, EUA, 1969), de Gene Kelly. Com Barbra Streisand (Dolly Levi), Walter Matthau (Horace Vandergelder), Michael Crawford (Cornelius Hacki), Marianne McAndrew (Irene Molloy), Danny Lockin (Barnaby Tucker), E. J. Peaker (Minnie Fay), Joyce Ames (Ermengarde), Tommy Tune (Ambrose Kemper).

A cruz da minha vida

O filme abre com Lora Delaney apresentando a casa para Marie, jovem estudante de artes que deseja alugar um quarto próximo à universidade. Doc Delaney chega em casa e, a princípio, é contra o aluguel, mas quando conhece a moça muda de ideia.

Doc participa de um grupo de ex-alcoólatras, tentando se manter longe do vício. Sua mulher Shirley vive solitária em casa, com as lembranças do vício do marido que o transformava em uma pessoa violenta e perigosa. A jovialidade da estudante Marie, envolta em seus anseios pela arte, pelo namoro com jovens colegas, provoca as lembranças e desejos reprimidos do casal.

A cruz da minha vida, baseado na peça teatral Come back, little Sheba, trata com força de temas obscuros da mente humana, como desejo, culpa, escolhas. As lembranças do passado atormentam o casal de protagonistas e a perda se reflete no sugestivo título original: Lora Delaney clama e espera pela volta de sua pequena cadela Sheba.   

A cruz da minha vida (Come back, little Sheba, EUA, 1952), de Daniel Mann. Com Shirley Boot (Lora Delaney), Burt Lancaster (Doc Delaney), Terry Moore (Marie).

Sublime obsessão

O playboy Bob Merrick (Rock Hudson) está extrapolando os limites da velocidade em seu barco no lago. Acima dos 290 km/h, ele sofre acidente. O grupo de salvamento pede emprestado o ressuscitador do famoso médico que mora nas margens do lago. Enquanto Bob é atendido, o médico sofre um ataque cardíaco e, sem o equipamento, morre. Médico altruísta, herói para centenas de pacientes, morre porque um ricaço estava se divertindo perigosamente. É o ponto de partida para um dos mais famosos melodramas da história do cinema, que se completa com outro acidente: Bob se apaixona pela viúva do médico, Helen (Jane Wyman). Certa tarde, fugindo do cortejo de Bob, Helen é atropelada e fica cega.  A partir daí, Bob fará tudo para conquistar o amor de Helen e salvá-la, se redimindo de suas culpas e de sua vida pregressa.

É dos melhores filmes do diretor Douglas Sirk, com o primor narrativo que acompanha suas produções. “Uma história menor é o melhor material cinematográfico. Mesmo no teatro, não é a história que conta acima de tudo. É a linguagem que conta. A linguagem no cinema é substituída pela câmera e pela montagem. É preciso escrever com a câmera.” – Douglas Sirk.

As cores em Sublime obsessão tornam o filme grandioso, jogo cromático evidenciando o espetáculo visual da natureza. O contraponto é Helen, cega para este esplendor, cega para o amor que sente por Bob. Os cortes precisos evitam a pieguice. Em momentos cruciais da narrativa, Douglas Sirk joga o espectador no fascinante universo das elipses cinematográficas, deixando espaço para a imaginação do público. Trabalho de um diretor que entende que o cinema não existe sem a participação do espectador.

Sublime obsessão (Magnificent obsession, EUA, 1954), de Douglas Sirk. Com Rock Hudson, Jane Wyman.

Aconteceu naquela noite

Aconteceu naquela noite (1934) é um dos três filmes na história do Oscar a conquistar os cinco principais prêmios: ator, atriz, roteiro, direção e filme. Os outros são Um estranho no ninho (1975) e O silêncio dos inocentes (1991).

Ellie (Claudette Colbert) é filha de milionário novaiorquino. Após discussão com o pai, que não aceita seu casamento com um notório playboy, Ellie foge, pulando do iate. Em um ônibus, a caminho de Nova York, ela conhece Peter (Clark Gable), jornalista que descobre sua identidade e a acompanha, tentando conseguir uma boa história de interesse humano.

Um dos primeiros road-movies do cinema é também uma comédia maluca, recheada de situações inusitadas, beirando o absurdo.  “O filme ilustra bem as bases do gênero que se tornou febre na Hollywood dos anos 1930 e 1940: falta de compatibilidade psicológica inicial entre os personagens, mundos desconexos e relação que evolui das brigas para o amor. Conversa-se muito nas comédias malucas, os personagens falam ao mesmo tempo, ninguém se entende; as ações se sucedem num ritmo bastante acelerado. Esse tipo de filme resume a excelência do cinema hollywoodiano em construir histórias cheias de reviravoltas e humor, com roteiros complexos e atuações impecáveis.” – Pedro Maciel Guimarães.

Aconteceu naquela noite consagrou Clark Gable, mas é, efetivamente, um filme de Frank Capra. O diretor foi responsável por construir enredos edificantes à moral americana em tempos sombrios nos anos 30, quando os Estados Unidos e o mundo estavam assolados pela grande depressão e pelas incertezas do período entre guerras.

“Na era revisionista na qual vivemos, Capra é considerado um autor sentimentalista, cujo patriotismo se elevava em filmes politicamente corretos. Os críticos desconsideram o talento do diretor em lidar com as complexas possibilidades cinematográficas, incluindo metáforas, elipses. ritmo narrativo e direção de atores. Exemplo: a fascinante sequência final de Aconteceu naquela noite, quando tudo que o espectador desejou ver ao longo do filme é simulado do lado de fora do quarto, ao som das trombetas derrubando as muralhas de Jericó.” – Pedro Maciel Guimarães

Aconteceu naquela noite (It happened one night, EUA, 1934), de Frank Capra. Com Clark Gable (Peter), Claudette Colbert (Ellie), Walter Connolly (Andrews).

Referência: Coleção Folha Grandes Astros do Cinema. Vol. 6, Clark Gable. Cássio Starling Carlos. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2014.

Porto das Caixas

Porto das Caixas (1962) é dos mais instigantes filmes do Cinema Novo brasileiro. Com resquícios de Obsessão (1942), de Luchino Visconti, é a clássica história do triângulo amoroso motivado por uma mulher sedutora que deseja se livrar do marido.

“Ainda em 1962, Paulo César Saraceni (três anos após finalizar ARRAIAL DO CABO e em seguida à grande repercussão que o filme obteve em 1961) inicia as filmagens de PORTO DAS CAIXAS, uma fita singular dentro do Cinema Novo da época, marcada talvez pela passagem do autor pelo Centro Sperimentale de Cinematografia, em Roma. O filme foi inspirado no célebre ‘crime da machadinha’, que abalou a sociedade carioca na década de 1950. Relata a estória de uma mulher, desesperada ao extremo por seu cotidiano com o pacato marido, que induz o amante a assassiná-lo.”

A lentidão do filme, a bela fotografia destacando as ruas vazias da cidade, diálogos curtos, entrecortados por longos planos de casas, imagens da estação de trem, de moradores silenciosos, submergem o espectador no universo psicológico dos personagens. A solidão da triste mulher, vivida por Irma Alvarez, é de uma melancolia contagiante, quase a justificar sua luta desesperada por alguém que mate o marido.

“O filme não foi bem recebido pela crítica ao ser lançado em 1963 e fracassou na bilheteria. Uma grande polêmica levantou-se em torno do fato de a fita adentrar o universo psicológico dos personagens, explorando (com planos longos e ação lenta) em tom monótono seu progressivo definhamento moral.”

Porto das Caixas se destaca nesta revolucionária cinematografia do Cinema Novo. A trama toca fundo nos dramas vividos pela dupla de protagonistas, nas angústias diante de questões comuns em conflitos psicológicos, como a vontade de viver vidas diferentes.

Porto das Caixas (Brasil, 1962), de Paulo César Saraceni. Com Reginaldo Faria, Irma Alvarez, Paulo Padilha, Margarida Rey.

Referência: História do Cinema Brasileiro. Fernão Ramos (organizador). São Paulo: Círculo do Livro, 1987.

A trapaça

Augusto, Picasso e Roberto percorrem o interior da Itália aplicando golpes em camponeses. O trio enterra ossos e caixa com bugigangas debaixo de uma árvore dizendo se tratar de tesouro. Augusto, travestido de Monsenhor, diz que podem ficar com o tesouro se pagarem por missas. Em Roma, vão em uma favela se fazendo de agentes imobiliários do governo para recolherem a primeira prestação de casa populares.

Federico Fellini volta seu olhar neo-realista para a falta de escrúpulos de bandidos que exploram a miséria alheia. O conflito psicológico dos golpistas aflora em Picasso, confrontado por sua esposa Iris, e em Augusto, quando reencontra a filha nas ruas de Roma. Diferente de outros filmes de Fellini, quando os boas-vidas terminam na noite despretensiosa, Augusto, atormentado pela consciência, descobre que não há redenção para este tipo de crueldade.

A trapaça (Il bidone, Itália, 1955), de Federico Fellini. Com Broderick Crawford (Augusto), Richard Basehart (Picasso), Franco Fabrizi (Roberto), Giulietta Masina (Iris).

Tudo bem no ano que vem

George e Doris estão comendo em mesas distintas, no restaurante de um hotel à beira-mar, na Califórnia. Flertam, brincam à distância, pouco depois estão juntos na mesa. Entra o tradicional clipe das comédias românticas, a bela canção The last time felt like this, acompanhando o início do romance do casal. Corta para manhã do dia seguinte, George e Doris acordam na mesma cama. Lettering indica o ano: 1951.

Tudo bem no ano que vem (1978) é divertida abordagem sobre o relacionamento de amantes com o passar do tempo. George e Doris são casados, logo no dia seguinte remoem a culpa, mas se declaram apaixonados. Resolvem se encontrar todo ano, durante um final de semana, no mesmo hotel. A trama acompanha a evolução do romance e dos personagens durante 26 anos. As elipses, sempre pontuadas pela mesma canção, acontecem com a inserção de fotografias de fatos relacionados à época: políticos, músicos, cenas de cinema, jovens nas ruas, imagens de guerra.

O desafio do diretor Robert Mulligan é segurar a trama durante quase duas horas com apenas dois personagens, dentro do mesmo cenário, a cabana do hotel. A passagem do tempo é indicada tanto pelas mudanças físicas e psicológicas (George e Doris afetados por fatos, como a Guerra do Vietnã), como de figurinos (Doris aparece vestida de hippie). O destaque do filme são os diálogos, com força  e bom-humor o suficiente para retratar o comportamento dos amantes diante das escolhas (bela história de amor), assim como para apontar que os personagens são resultados de seu próprio tempo.

Tudo bem no ano que vem (Same time, next year, EUA, 1978), de Robert Mulligan. Com Ellen Burstyn (Dóris), Alan Alda (George).

A navalha na carne

A navalha na carne, adaptação da peça de Plínio Marcos, é exemplo do uso competente das estratégias narrativas do cinema e do teatro. Os primeiros trinta minutos são um exercício de narrativa cinematográfica. A prostituta Norma Sueli acorda e deixa Vado, seu cafetão, na cama. Ela vai para as ruas trabalhar. São quase trinta minutos de som ambiente, sem falas, alternando cenas de Norma Sueli nas ruas e na cama com um cliente, o homossexual Veludo entrando e saindo do quarto de Vado, seduzindo a seguir um rapaz. Imagens que se sucedem sem falas, preparando o espectador para o conflito.

Quando a prostituta volta ao quarto de Vado, o teatro toma conta da narrativa, um violento confronto entre os três protagonistas. Veludo é acusado por Norma Sueli e Vado de roubo e tem que se defender. Mas o verdadeiro conflito é psicológico, os personagens se revelando através da guerra de palavras, gestos contraditórios, desejos. Cinema ou teatro, não importa, A navalha na carne é estudo da natureza humana que se esconde e se revela entre quatro paredes.

A navalha na carne (Brasil, 1969), de Braz Chediak. Com Jece Valadão (Vado), Glauce Rocha (Norma Sueli), Emiliano Queiroz (Veludo).