Leitura de aeroporto

Sou um mineiro exagerado. O voo estava marcado para as cinco da tarde. Cheguei às duas horas. Fui para a livraria procurar uma revista de cinema para passar o tempo. Não sei o que está acabando, livrarias ou revistas de cinema. Livros de autoajuda e misticismo, guias de viagem despencavam pelas prateleiras, nada de revista de cinema. Um ou outro Saramago, Clarice Lispector, é verdade, mas eu queria leitura de aeroporto, sem pretensão, daquelas que você pode levantar o olho para o movimento.

Lá no canto da livraria, a salvação, uma pilha de pocket-books. E deleite dos deleites para mais de três horas de espera, Assassino Metido a Esperto, livro de contos policiais de Raymond Chandler.

Raymond Chandler (1888-1959) foi, ao lado de Dashiell Hammett, o mais expressivo dos escritores da geração pulp-fiction. Os personagens de seus contos e romances viviam em prostíbulos, bares, casas de jogos, apartamentos pequenos e bagunçados nas ruas e becos de Los Angeles. Os detetives fumavam e bebiam às vias de fato (o próprio Chandler era alcoólatra), entravam em todo tipo de enrascada por uma bela mulher e cobravam entre 5 e 10 dólares de honorários para resolver os crimes.

Philip Marlowe, o detetive mais famoso de Chandler, era pouco mais nobre, fez curso superior, gostava de bebida, de mulheres e de trabalhar sozinho. Era um romântico e, às vezes, perdoava a vítima por puro sentimentalismo. Uma mulher com quem passara a noite perguntou-lhe certa vez:

– Como pode um homem tão duro ser assim tão delicado? – Marlowe respondeu.

– Se eu não fosse duro, não estaria vivo. Se eu não fosse delicado, não merecia estar vivo.

Marlowe protagonizou sete romances de Raymond Chandler. O detetive soturno e dúbio gerou pelo menos um clássico no cinema, À Beira do Abismo (1946), de Howard Hawks, interpretação primorosa de Humphrey Bogart. Era o melhor do gênero noir que influencia escritores e diretores de cinema até hoje. Exemplos: Acossado (1959), Chinatown (1974), Corpos Ardentes (1981), Blade Runner – O Caçador de Andróides(1982), Pulp Fiction (1994). Em cada um desses filmes, os personagens resvalam entre o crime e a lei, a violência e a compaixão, a ambição e a falta de perspectiva no dia-a-dia. Humanos, como todos nós.

Primeiro amor, último sacramento e Entre lençóis

Primeiro amor, último sacramento e Entre lençóis é coletânea de contos, edição conjunta dos dois primeiros livros do autor inglês Ian McEwan. Os contos alternam narrativas eróticas, incluindo histórias de incesto e pedofilia, com mergulhos na insanidade humana. Perversões sexuais dominam grande parte do livro.

“O’Byrne foi sendo imperceptivelmente iniciado dos desejos de Lucy. Não era simplesmente que ela quisesse ficar agachada em cima dele. Ela não queria que ele se mexesse. ‘Se você se mexer de novo’, avisou-lhe certa vez, ‘está perdido’. Por simples hábito, O’Byrne fodeu para cima, mais profundamente, e rápido como a língua de uma serpente ela o golpeou várias vezes no rosto com a mão espalmada. No mesmo instante gozou, deitando-se a seguir atravessada na cama, meio soluçando, meio rindo. O’Byrne, com metade do rosto inchado e vermelho, foi embora emburrado. ‘Você é uma pervertida de merda’, gritara ele da porta.”

Narrativas que não se completam, marcas dos contistas contemporâneos que exploram o universo humano de forma seca, sem aprofundamento nos personagens. São as situações que direcionam as histórias, as personagens transitam por elas com frieza, seus atos parecem soluções naturais. No conto Borboletas, McEwan usa da primeira pessoa para narrar um caso de pedofilia que acontece quase como puro acaso.

“- Menina boba – disse eu -, não tem borboletas. – Em seguida levantei-a delicadamente, tão delicadamente quanto possível, para não acordá-la, e fi-la deslizar suavemente para dentro do canal.”

“Ela se inclina de volta para dentro do barco. Sua boca está rindo, porém seus olhos parecem meio secos e apavorados. Ela cai de joelhos, segurando a barriga devido à dor das risadas, e derruba Alice junto com ela. E o barco vira. Vira porque Jenny cai contra o lado, porque Jenny é grande e meu barco pequeno. Vira rápido, como o clique do obturador de minha câmera, e de repente estou no fundo verde do rio tocando a lama fria e macia com as costas da mão e sentindo os juncos no rosto. Posso escutar gargalhadas como pedaços de pedra a afundar junto a meu ouvido. Mas quando dou um impulso para cima e subo à superfície, não sinto ninguém perto de mim.”

Ian McEwan se consagraria com o premiado Reparação (adaptado para o cinema com relativo sucesso em 2007), também uma história de como olhar os desejos: alguns com perversão, outros com naturalidade. Em Primeiro amor, último sacramento & Entre lençóis, os narradores adotam a naturalidade, o olhar complacente sobre a natureza humana, sem preconceitos ou julgamentos.

Histórias do mar

O fascínio que tenho pelo mar é contemplativo. O sentimento aventureiro de desbravar ondas ficou na adolescência, felizmente. Gosto de me sentar de frente e ficar olhando incompreensível para a beleza. Não passo disso, mas deixo-me embalar pelas histórias de apaixonados que foram além. Basta citar alguns de meus livros favoritos: Moby Dick, de Herman Melville, Lord Jim e Nostromo, de Joseph Conrad, As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, Robinson Crusoé, de Daniel Defoe.

Acabo de ler Histórias do mar – Coletânea de Novas Histórias do National Maritime Museum com esta sensação de voltar às aventuras do mar. O livro reúne contos de autores contemporâneos como Sam Llewellyn, Chris Cleave e Tessa Radley. Histórias que se mesclam entre a aventura dos que enfrentaram oceanos e o cotidiano daqueles que se criaram em frente ao mar. Em ambos os estilos, o fascínio permanece. Às vezes de forma terna, como no conto Devonia.

Não sei como começou isso. Estou com os meus braços em volta dela. E os braços dela em volta de mim. O sol está se pondo no Atlântico e aqui, tão perto da África, está muito quente. (…) Agora eu posso esquecer tudo, porque esta menina, esta menina linda, quis ficar comigo, bem no momento em que nosso navio está para sair do Oceano Atlântico e entrar no Mediterrâneo.”

Outras vezes, de forma assustadora, como no conto Batisferas.

“Quando a porta se abriu mais um pouco, captamos um miasma que ninguém deveria jamais cheirar: o eflúvio de algo inteiramente não humano, abominável, proveniente de um mundo de mucos sugados, absolutamente sem luz, numa umidade asfixiante, abrigo de bocas sôfregas para as quais o corpo humano era um petisco, nada além disso. Negrume encharcado, umidade dos infernos. O metal enferrujado rangeu, e a porta cedeu mais um pouco. O ar fétido escapuliu num silvo e percorreu a multidão; houve quem vomitou. Todos, ao mesmo tempo, deram um passo para trás; alguns saíram correndo. Senti o terror me invadindo. Eu não queria ver o que estava dentro da caixa. O terror subiu rastejando por minha pele e me envolveu, grudento como teia de aranha.”

O fascínio pelo mar, representado em tantas belas histórias dos escritores clássicos aos contemporâneos, está justamente nesta incompreensão. O mar terno das águas azuis é também capaz de provocar o terror, o mais puro terror.