Jules et Jim

O amante da minha mulher deixou a cama e perguntou:

– Posso tomar um banho antes?

– À vontade – respondi. Fui até o barzinho e coloquei um copo de uísque puro, sem gelo. Coloquei um CD da Cássia Eller – minha mulher detesta Cássia Eller. Aumentei o volume. Tirei o paletó, a gravata. Pensei em trocar a camisa, colocar camiseta daquelas que a gente ganha em festas de final de ano, não teria problema se manchasse de sangue. Não, camisa de manga comprida, com os punhos dobrados, é mais cinematográfico.

Minutos depois os dois saíram do quarto. Ela, de roupão, ele, de calça jeans e camisa esporte, os cabelos despenteados. Sentaram-se no sofá.

– Quer tomar uísque, vodca? – perguntei ao invasor.

– Obrigado, só tomo cerveja.

– Pega uma pra ele na geladeira. – minha mulher trouxe uma lata de Skol. Ficamos os três sentados, mudos. Minha mulher tentou dizer algo, mas desistiu diante da indiferença.

– Aqui, ou lá na rua? – perguntei depois que ele acabou de tomar a cerveja. Ele olhou em volta, talvez medindo o espaço.

– Não sei. Os móveis, podem quebrar. Lá na rua, os vizinhos…

– Todo mundo já deve saber mesmo. Quanto aos móveis, compram-se outros. O que é que você acha meu bem? – ela olhou de relance para os seus móveis queridos.

– Aqui, aqui é melhor, mas você tem certeza?

A briga durou cerca de um minuto. Imaginava algo como Charlton Heston e Gregory Peck em  Da terra nascem os homens: socos elegantes, respeito mútuo. Mas depois de alguns pontapés desajeitados, mais ao estilo da degradante refrega em Rashomon, terminamos os dois engalfinhados no tapete da sala. Até mordida teve.

Quando nos separamos, cada um se arrastou para um canto da sala, ofegante. Olhei em volta, descobri surpreso que nada havia se quebrado. Apenas algumas manchas de sangue, quase imperceptíveis, no tapete da sala. Senti um gosto de sangue na boca. Meu olho doía e não conseguia levantar os braços sem uma pequena pontada no ombro. Percebi que minha mulher não chorava mais. Seu rosto estava sereno, expressão desconhecida. Olhava para mim, depois para ele. Ela foi até a cozinha e voltou com um pano molhado. Debruçou-se à minha frente e começou a limpar o sangue da minha boca. Senti no seu hálito um cheiro há muito esquecido. Seus olhos pararam algumas vezes nos meus. A princípio, reticentes, se desviavam. Depois, atrevidos, o pano esquecido em suas mãos.

Ela levantou-se e caminhou para o outro lado da sala. Sentou-se ao lado do amante e repetiu o ritual. Passou o mesmo pano, já sujo do meu sangue, pelo rosto dele. Calma, medindo os gestos. Ela estava de costas para mim, mas senti os mesmos olhos que me fitaram se revelando também para ele.