Ascensor para o cadafalso

Aos 20 anos de idade, Louis Malle abandonou a universidade de cinema para trabalhar com Jacques Cousteau. Os dois dirigiram o documentário O mundo do silêncio (1956), vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes. Após, Louis Malle decidiu realizar seu primeiro longa de ficção, escolhendo um romance policial – segundo Louis Malle, precisava começar a carreira com um filme mais comercial. 

A narrativa de Ascensor para o cadafalso transcorre quase inteiramente durante uma noite. Florence Carala combina com seu amante, Julien Tavernieu, o assassinato de seu marido, Simon Carala, um rico traficante de armas. Após o assassinato, uma série de coincidências encaminha o destino dos dois amantes para um final trágico: Julien fica preso no elevador do prédio onde cometeu o assassinato, um casal de jovens delinquentes rouba o carro de Julien e matam um casal de turistas alemãos. Enquanto isso, Florence caminha pela noite de Paris à procura de seu amante. 

Louis Malle faz uma releitura do cinema noir americano, antecipando ainda, de certa forma, a nouvelle vague francesa. Todos os personagens são marginais, movidos por instintos e desejos, sem se preocupar com as consequências de seus atos. Florence é o pivô da trama, como sempre, no filme noir, uma mulher provocadora. No entanto, Florence carrega uma profunda angústia e tristeza. Sua jornada pelas ruas, iluminada pelas luzes naturais da cidade, deixando-se molhar pela chuva, entrando em bares e delegacias de polícia é o grande destaque do filme.

Louis Malle permitiu a Miles Davis improvisar a trilha sonora do filme. No estúdio de gravação, o músico assistia à sequência de Florence caminhando pela noite enquanto compunha e executava ao mesmo tempo, com seu trompete, a inesquecível trilha de Ascensor para o cadafalso.  

Ascensor para o cadafalso (Ascenseur pour l’échafaud, França, 1958), de Louis Malle. Com Jeanne Moreau (Florence), Maurice Ronet (Julien Tarvenieu), Georges Poujouly (Louis).

O signo do leão

O primeiro longa-metragem dirigido por Eric Rohmer apresenta uma das marcas de seu estilo: personagens que se movem incessantemente pelas ruas das cidades, principalmente Paris. 

Pierre acorda, atende o telefone e descobre que herdou um bom dinheiro da sua tia, que acabara de falecer. Liga para os amigos, pede dinheiro emprestado e dá uma grande festa em seu apartamento. Dias depois, descobre que a tia, na verdade o deserdara. Sem emprego, endividado, abandonado pelos amigos a quem sempre recorreu, Pierre vaga de hotel em hotel, sem bagagem, pois precisa abandonar os quartos sempre que cobrado. Quando não consegue mais hospedagem, empreende uma caminhada durante dias pelas ruas de Paris até cair na completa mendicância. 

A narrativa é marcada pela bela fotografia em preto e branco; pelos longos silêncios de Pierre enquanto caminha; pela futilidade da boemia das noites parisienses; pela frustração de artistas como o próprio Pierre, um músico, e por outro sem-teto (Jean Le Poulain), um ator que encena trechos caricatos pelas ruas em troca de moedas. 

O final, quase milagroso, aponta a redenção de Pierre, mas deixa no ar o grande vazio destes personagens que vivem à margem em cidades como Paris, aparentemente bela e glamourosa. 

O signo do leão (Le signe du lion, França, 1959), de Éric Rohmer. Com Jess Hahn (Pierre Wesselrin), Van Doude (Jean-François Santeuil), Michèle Girardon (Dominique),  

La sonate à Kreutzer

A narração em primeira pessoa encaminha essa história de possível adultério, ciúme, obsessão e crime. A jovem esposa do arquiteto Poznyecev passa seus dias ensaiando a Sonata a Kreutzer, acompanhada de um também jovem violinista. A desconfiança se instaura na mente do arquiteto que passo a passo fica cada vez mais dominado pelo ciúme. Ele finge uma viagem a trabalho e volta repentinamente para casa, flagrando o casal de músicos deitados no sofá. 

Jean-Luc Godard, que atua como coadjuvante, é o produtor do curta. Claude Chabrol e François Truffaut também aparecem em pontas. O projeto colaborativo dos jovens críticos de cinema tem uma atração à parte: Poznyecev vai encontrar seu amigo crítico (Godard) no trabalho, cujo cenário é nada mais nada menos que a própria Cahiers Du Cinema.  

La sonate à Kreutzer (França, 1956), de Éric Rohmer. Com Éric Rohmer (Poznyecev), Françoise Martinelli (a esposa). Jean-Claude Brialy (Trukhacevskij).

Véronique et son cancre

O curta de Éric Rohmer, com dois personagens em cena, filmado inteiramente dentro de um apartamento (residência de Claude Chabrol), mistura humor, ironia e crítica social. Véronique, uma jovem tutora, tenta ensinar matemática e francês a uma criança. No entanto, o estudante refuta com análises lógicas, mesmo que baseadas em seu raciocínio infantil, as questões apresentadas pela tutora. 

O destaque da trama são as investidas da criança contra a tutora e, naturalmente, contro os procedimentos de ensino. Tudo que a criança quer é despachar a professora e voltar para suas brincadeiras no chão da sala. Ficar livre daquilo é também a sensação expressa pela professora que, vez por outra, tira os sapatos e esfrega com impaciência (e talvez com leve erotismo) os pés. .

Véronique et son cancre (França, 1958), de Éric Rohmer. Com Nicole Berger (Véronique) e Alain Delrieu (estudante). 

Berenice

Os primeiros curtas experimentais de Éric Rohmer destoam de sua carreira como longa-metragista, principalmente a partir das famosas séries Seis contos morais, Comédias e provérbios e Contos das quatro estações. Em Berenice, Rohmer se debruça sobre a narrativa de gênero, adaptando uma história de Edgar Allan Poe. 

O protagonista (interpretado pelo próprio Rohmer) sente uma atração por sua prima Berenice, que se transforma em obsessão quando ele vê os dentes dela. A estética reflete influências claras do expressionismo alemão, demonstrando, neste momento, o trabalho do crítico da Cahiers Du Cinema que se inspira na história do cinema em sua passagem para a realização. A Cahiers Du Cinema está presente também na forma de colabores. O filme foi fotografado e editado por Jacques Rivette, com câmera 16mm, e integralmente rodado na casa de André Bazin.  

Berenice (França, 1954), de Éric Rohmer. Com Éric Rohmer e Teresa Gratia.

Rashomon

A obra-prima de Akira Kurosawa foi um dos filmes, na década de 50, que chamou a atenção do ocidente para o potente e criativo cinema japonês, composto ainda por dois outros grandes mestres: Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi. 

A narrativa de Rashomon começa com três homens se escondendo de uma tempestade em um templo abandonado. Ao lado de uma fogueira, conversam e refletem sobre uma história aterradora que presenciaram como testemunhas em um julgamento. Em um dia quente e ensolarado no bosque, um crime é cometido. Um famoso bandoleiro fica obcecado pela beleza de uma jovem que passa na trilha, em cima do cavalo guiado pelo seu marido. O bandoleiro rende o casal, amarra o marido em uma árvore e, aos olhos dele, estupra a jovem (que pouco a pouco se entrega ao ato). O marido consegue se libertar e duela com o bandoleiro até a morte. 

A estrutura da narrativa é inovadora, pois parte dos pontos de vista do crime durante o julgamento. A jovem, o bandoleiro, um lenhador que presenciou o crime e até mesmo a vítima (incorporada em uma médium) testemunham no julgamento. No entanto, cada depoimento apresenta um ponto de vista diferente. 

“Contada a partir de pontos de vista conflitantes em forma de flashback, filmado com uma câmera fluida, em constante movimento, e fotografados sob uma abóbada de luz salpicada, Rashomon detalha perspectivas não-confiáveis. A sinceridade dos personagens na tela e a veracidade das ações relatadas mostram-se, portanto, enganosas. Fatos são colocados à prova e imediatamente questionados. Discrepâncias entre as histórias sobrepostas do marido, da esposa e do bandido tornam difícil um relato fiel.”

Quando termina a tempestade e a narrativa do crime, um fato inesperado surge entre os três peregrinos. Ouve-se o choro de um bebê abandonado nas ruínas do templo. O lenhador acolhe a criança. Assim como em outro clássico, O encouraçado Potemkin, de Eisenstein, na famosa sequência da escadaria, um bebê pode ser o símbolo da redenção, resgatando a bondade humana que existe em pessoas desoladas diante de tempos cruéis. 

Rashomon ((Japão, 1950), de Akira Kurosawa. Com Toshiro MIfune, Machiko Kyo, Nasayuki Mori, Takashi Shimura, Minoru Chiaki, Kichijuro Ueda. 

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

O vagabundo

Raghunath é um prestigiado juiz, casado com Leela. Certa noite, sua esposa é sequestrada pelo bandido Jagga que tem contas a acertar com o juiz. Raghunath o condenou à prisão sem provas, alegando que “filho de bandido será sempre bandido.” Quando descobre que Leela está grávida, o bandido a liberta após cinco dias de cativeiro. Ao saber da gravidez de sua esposa, a dúvida sobre a paternidade se instaura de forma destruidora na mente do juiz. 

A trama expõe questões inerentes ao cruel sistema paternalista não só da Índia, mas da humanidade. O juiz nega a paternidade e seu filho se transforma no Vagabundo do título, cumprindo o destino determinado pelo próprio pai (a vingança de Jagga). Esteticamente, o filme traz a marca do cinema de qualidade desenvolvido em Bollywood, com cenários perfeitos, o melodrama e o musical pontuando a narrativa – gêneros preciosos ao cinema indiano, sequências glamourosas e extravagantes (os sonhos de Raj). 

O vagabundo (Awaara, Índia, 1951), de Raj Kapoor. Com Raj Kapoor (Raj), Nargis (Rita), Prithviraj Kapoor (Juiz Raghunath), K. N. Singh (Jagga), Leela Chitnis (Leela)

Lola Montès

O ator James Mason escreveu um poema alegórico para Max Ophuls que reflete muito do estilo do diretor alemão: “Acho que sei porque os produtores tendem a fazê-lo chorar. Inevitavelmente, eles exigem um arranjo parado e uma forma que não exija trilhos. Isso é uma agonia para o pobre Max, que separado de seu carrinho envolve-se na mais profunda melancolia. Uma vez, quando levaram sua grua embora, pensei que ele nunca mais sorriria.” 

Max Ophuls se consagrou pela elegância não só dos movimentos de câmera, mas também dos enquadramentos, pela sensibilidade inigualável de fotografar seus atores em momentos sutilmente glamourosos. Lola Montès é o último e único filme colorido do diretor. A escolha da cinebiografia livre da famosa cortesã que seduziu importantes figuras da aristocracia europeia, como o compositor Franz Liszt e o rei da Bavária, se mostrou perfeita para um verdadeiro espetáculo em cores. A narrativa mistura a extravagância circense, quando Lola se vê desprovida de recursos e passa a trabalhar como atração de circo, com a elegância das cortes europeias, quando ela encantava e seduzia integrantes da aristocracia. 

“O filme de Ophuls não é uma cinebiografia convencional. Em vez disso, ele elabora uma luxuosa extravagância barroca, parte circo, parte cortejo, repleto de flashbacks, e faz sua câmera notoriamente móvel passar pelas complexas decorações. No papel-título, Martine Carol oferece uma interpretação taciturna e emocionalmente chapada. No entanto, apesar de todas as suas limitações, Carol se encaixa no conceito de Ophuls. Como sempre, seu interesse está no abismo entre o ideal do amor e sua realidade falha e desencantada. Sua Lola é apenas uma tábula rasa passiva em que os homens projetam suas fantasias. Seu destino final como uma atração de circo que vende beijos por um dólar reduz sua profissão à sua lógica mais brutal. Lola Montès, um film maudit clássico, foi retalhado pelos seus distribuidores e, durante muito tempo, esteve disponível apenas em uma versão truncada, porém um cópia recém-restaurada nos permite apreciar o canto de cisne de Ophuls em todo o seu pungente esplendor.”

Sobre seu notório fascínio pela câmera móvel, Max Ophuls declarou: “Muitas vezes me criticam por movimentar demais a câmera. Eu faço isso simplesmente para acompanhar o ritmo da cena. Não planejo nada. Espero para ver como a cena vai se desenrolar e mantenho o foco nos atores. Em inglês, filme é chamado de movie, que vem de movimento. Sou impulsionado pelo movimento do filme e capturo as emoções. Digamos que estou filmando uma cena que considero triste. Se eu fosse um maestro conduziria a música a um passo lento, triste. Da mesma forma, deixo o movimento de câmera lento e triste.”

Lola Montès (França, 1955), de Max Ophuls. Com Martine Carol, Peter Ustinov, Anton Walbrook, Oscar Werner.

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

La Pointe Courte

O primeiro filme de Agnès Varda poderia ser considerado também o primeiro filme da nouvelle-vague francesa, pois apresenta os princípios estéticos e narrativos que marcaram o movimento a partir de 1959: atores não-profissionais; gravações em locações; cortes e movimentos de câmera que destoavam do cinema dominante, dito de qualidade; temas do cotidiano das comunidades. 

São apenas dois atores profissionais em cena. Philippe Noiret e Silvia Monforte. Eles interpretam um casal de namorados que visita a Pointe-Courte, pequena vila de pescadores no sul da França. Enquanto caminham pela vila, o casal discute a relação e outros temas inerentes à juventude, pessoas enamoradas que se confrontam com incertezas. Narrativas paralelas mostram o cotidiano dos moradores, simples e pobres pescadores que se dividem entre a labuta pela sobrevivência e os prazeres singelos dos dias que passam ao sabor do sol, do vento, do mar. 

A locação escolhida por Agnès Varda faz parte de suas memórias de infância, uma das praias que a cineasta frequentou e que revisita, em forma de reflexões, no belo documentário As praias de Agnès (2008). 

“As ruas da Pointe Courte, por onde eu adorava andar. Fotografava muito e fui descobrindo este bairro. Ouvia histórias de uns e outros, sobretudo as dos mais velhos. Queria usá-las para fazer algo, um filme. Parecia preparar um documentário, mas parte do filme era sobre um casal. A Silvia Monfort e o Philippe Noiret, que estreou neste filme, participaram generosamente nesta experiência cinematográfica. Tinha pensado numa certa estrutura, um projeto de dois filmes misturados por capítulos alternados, como num romance de Faulkner que me impressionou, Palmeiras Bravas. Iria, portanto, alternar as sequências dos pescadores com as do casal. Duas narrativas, cujo único ponto em comum era o local: Pointe Courte. Ela descobriu onde ele nasceu. Ele mostrou-lhe as casas, as ruelas.” – Agnès Varda. 

La Pointe-Courte (França, 1954), de Agnès Varda. Com  Philippe Noiret (Lui), Silvia Monforte (Elle). 

Trono manchado de sangue

O filme é a mais impressionante, tenebrosa e assustadora adaptação da célebre peça Macbeth. Nem mesmo Shakespeare imaginava que seria possível traduzir em imagens a soturna incursão pelos meandros das almas e mentes atormentadas pela cobiça do casal de protagonistas da peça. 

Akira Kurosawa adaptou a peça para o Japão feudal, um período marcado por batalhas sangrentas entres clãs arraigados às tradições. O General Washizu, destemido guerreiro samurai, é assombrado pela profecia de uma bruxa em uma floresta labiríntica ao voltar de batalha. A concretização da profecia é estimulada pela sua diabólica esposa, Lady Asaji (Isuzu Yamada): Washizu deve assassinar o seu comandante militar e se apoderar da liderança do reino.

“O maravilhoso Mifune – um dos protagonistas favoritos de Kurosawa em uma parceria longeva (mais de 16 filmes) tão notável quanto a de Martin Scorsese com Robert De Niro – aprofundou sua reputação como ilustre astro internacional japonês com sua atuação. A sequência de sua morte, encenada de forma brilhante, na qual ele é cravado por uma saraivada de flechas, é uma das grandes imagens icônicas do cinema mundial. Elementos do teatro Nô, da tradicional arte de batalha japonesa, de realismo histórico e da reflexão contemporânea sobre a natureza do bem e do mal são fundidos aqui em um mundo opressivo e envolto em neblina, repleto de presságios sinistros e mágicos, com suas florestas e castelos (o castelo foi construído em locações nas alturas do monte Fuji, com a ajuda de um batalhão do Corpo de Fuzileiros navais dos EStados Unidos baseado nas proximidades.)”

Trono manchado de sangue (Kumonosu-Jô, Japão, 1957), de Akira Kurosawa. Com Toshiro Mifune, Isuzu Yamada, Takashi Shimura, Akira Kubo, Minoru Chiaki. 

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.