Cidade do vício

A abertura de Cidade do vício destoa das características tradicionais do cinema noir e aproxima o filme de um relato documental. Clete Roberts, repórter, fala diretamente para a câmera, relatando o trabalho de cobertura jornalística que vai realizar na cidade de Phenix City, Alabama: “Estou aqui para descobrir a verdade sobre a cidade. Investigar o controle da cidade por um sindicato do crime e o assassinato a sangue frio  de Albert A. Patterson, procurador geral do Alabama.” Segue-se uma série de entrevistas, primeiro com o jornalista que conquistou o Prêmio Pulitzer com a investigação da atuação dos criminosos na cidade. Depois, o repórter ouve moradores da cidade que lutaram para limpar a cidade. Corta para créditos do filme.

A segunda parte da película reconstitui a história anunciada pelo repórter, centrando a trama no trabalho do advogado Albert Patterson e seu filho, também advogado, John Patterson. O vício da cidade está instalado na rua principal, ocupada por casas de jogos, prostíbulos e outros estabelecimentos ilegais. O sindicato do crime controla tudo, inclusive a polícia, que assiste a tudo com a passividade característica da lei corrupta, que fecha os olhos.

Cidade do vício é um dos filmes mais realistas e cruéis do cinema noir. Aparentemente, os criminosos trazem prosperidade para a cidade, empregando grande parte da população nos cassinos e na indústria de produção de equipamentos para a prática da jogatina. Quando um grupo de moradores decide combater a organização, uma série de assassinatos acontece, como aviso para os cidadãos de bem. Jovens, mulheres e crianças, o crime não poupa ninguém em sua escalada sádica e tenebrosa. Quando o cadáver de uma criança negra é atirado de um carro na porta da casa do procurador geral do Alabama, sabemos que estamos diante de um dos filmes mais difíceis de assistir deste fascinante cinema noir. É a realidade, e a realidade é triste, dolorosa e, muitas vezes, sem esperança. 

Cidade do vício (The Phenix City story, EUA, 1955), de Phil Karlson. Com John McIntire (Albert Patterson), Richard Kiley (John Patterson), Kathryn Grant (Ellie Rhodes), Edward Andreus (Rhett Tanner), Lenka Peterson (Mary Jo Patterson), Biff McGuire (Fred Gage), Truman Smith (Ed Gage), John Larch (Clem Wilson).

Accattone

Vittorio Accattone nunca trabalhou na vida e se orgulha disso, assim como sua trupe de amigos. Cafetão, Vittorio explora sua namorada Maddalena, forçando-a a se prostituir na periferia de Roma. Quando conhece a jovem e bela Stella, Accattone tenta também colocá-la nas ruas, mas se arrepende e tenta se redimir. 

O primeiro filme de Pasolini é um retrato cruel, mas com uma certa poesia, dos marginalizados de Roma. Accattone tem consciência de sua condição e transita entre a amargura e a diversão pelas ruas da cidade. Accattone é considerado o último filme do movimento neorrealista na Itália, muito mais por ser gravado nas ruas, em locações, com a câmera documental típica do estilo. Diferente de outros filmes do movimento, Pasolini espelha em seu protagonista a sua marca, Vittorio Accattone tenta tirar beleza e poesia da vida cotidiana, mesmo sabendo que seu destino trágico está traçado. A pesquisadora Erika Savernini analisa personagens e o cinema de Pasolini:

“O estado emocional da personagem (geralmente sofredora de alguma perturbação) serve como pretexto ao cineasta para uma exploração, no mais das vezes formalista, da linguagem cinematográfica. Por isso, o que se torna como a subjetiva da personagem é justamente a visão do cineasta, em alguns momentos, libertada da funcionalidade e tendo como objetivo primordial a expressividade. O embate do cineasta entre sua função como narrador (a entidade que vai selecionar as imagens do seu caos significativo e ordená-las) e seu desdobramento enquanto personagem (ser fictício cuja função é apenas a de viver – portanto, agir, sem estabelecer um sentido estrito) reflete-se na dupla natureza da imagem cinematográfica, que também se desdobra entre a objetividade e a subjetividade, entre prosa e poesia, entre comunicação e expressividade. Entretanto, assim como não se pode estabelecer os limites entre um cinema de prosa e um cinema de poesia, essas dicotomias apontadas por Pasolini também não representam pólos que se excluem, elas se cambiam. Pasolini declara-se comprometido com a narratividade cinematográfica, não lhe interessando a expressividade pura, mas uma possibilidade de língua de poesia em que a expressão mescla-se à narrativa.”

Accattone – Desajuste social (Accattone, Itália, 1961), de Pier Paolo Pasolini. Com Franco Citti (Accattone), Franca Pasut (Stella), Silvana Corsini (Maddalena). 

Referência: Índices de um cinema de poesia. Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Erika Savernini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004

Love me tender

Denise estava deitada na cama, o rosto voltado para cima, os longos cabelos castanhos espalhados no travesseiro emoldurando suas faces claras ainda marcadas pelo choro que entrara pela noite. Em alguns momentos, as lágrimas se transformaram quase em convulsões, mas agora seu peito respirava calmo, ritmado, como sono tranquilo a lembrar das coisas boas da vida.

Horas antes, naquela terça-feira de agosto, Denise entrou correndo pela minha casa e quase gritou parada à minha frente, tentando pegar fôlego: “Elvis morreu.” Fiquei sem reação, sem saber o que dizer, eu era ainda muito jovem para entender a morte. Ela repetiu a frase, “morreu” saiu de sua boca várias vezes como um eco. Depois desabou no sofá, escondeu o rosto entre os joelhos e longos soluços tomaram conta da sala.

Denise escutava seus discos no aparelho National 3 x 1 que ganhara do pai de aniversário de 15 anos. Ela descobrira Elvis há pouco. Quando o pai trazia um compacto ou um LP novo ela corria a me mostrar, repetindo canções com dedos cuidadosos na agulha para não arranhar o disco. Perdi a conta de quantas vezes ela me pôs a escutar You’ve lost that lovin’ feelin.

Em uma das festinhas do bairro, ela levou seus discos. A cada sábado, uma casa dos amigos sediava a festa. A turma levava discos, o som era colocado na sala com as caixas na varanda ou no quintal, as luzes quase todas apagadas. Os pais ofereciam k-suco ou refrigerante, nada mais. A festa começava com músicas quentes, passava para as lentas, voltava para quentes, lentas… .

Certa hora, Denise colocou Love me tender para tocar. Chamei-a para dançar, ela recusou, disse que tinha medo que alguém mexesse no som, arranhasse o disco. Fiquei perto dela, desconcertado, encostado na parede, olhando os casais. As meninas enlaçadas nos pescoços dos meninos, olhos fechados, passos incertos.

O Jornal Nacional passava uma matéria especial sobre a morte do cantor. Denise dormia no quarto. Não chorava há cerca de meia hora. Minha mãe preparara uma mistura de água com açúcar e insistira para que ela se deitasse um pouco.

Ainda hoje, quando ouço Elvis Presley, lembro-me daquela noite. Entrei no quarto para ver se ela estava bem. Denise dormia. Sentei-me ao seu lado, o movimento da cama a acordou. Ela abriu os olhos ainda vermelhos, me olhou com tristeza durante alguns segundos e voltou a fechá-los. Senti vontade de acariciar seus cabelos, passar a mão por suas faces. Apoiei o braço na outra extremidade da cama, por cima de Denise. Debrucei-me lentamente sobre ela, meu peito quase tocando os seios. Denise abriu os olhos e sorriu.

Naquela noite, conheci dois sentimentos inevitáveis da vida.