Dostoiévski, o jogador

Um jogador, de Fiódor Dostoiévski, retrata com conhecimento o mundo subterrâneo dos cassinos. Conhecimento que o autor adquiriu através do vício compulsivo pelo jogo.

“A paixão pelo jogo foi sua segunda doença, possivelmente relacionada com a primeira, uma obsessão verdadeiramente anormal. A isso devemos o maravilhoso romance O jogador, que se passa numa estação de águas alemã, inverossimilmente e perversamente chamada Roletemburgo. Nesse romance, a psicologia mórbida e do demônio Sorte é exposta com incomparável veracidade.” – escreveu Thomas Mann sobre o vício de seu colega escritor.

Aleksei Ivanovich serve a um general russo. Jogador inveterado, calculista, passa dias e noites em volta da roleta sempre que tem dinheiro. Também em volta da roleta se encontram diversas nacionalidades, incluindo alemães, ingleses, franceses, poloneses. Figuras caricatas, vencidas diariamente pelo vício.

“Não há qualquer magnificência nessas reles salas, e o ouro não apenas se amontoa sobre as mesas, mas até mal existe ali. Naturalmente, vez por outra, no decorrer da estação, aparece, de repente, algum excêntrico, um inglês ou um asiático, ou um turco, por exemplo, como aconteceu este verão, e, de chofre, perde ou ganha uma quantia muito elevada; mas todos os demais apostam uns escassos florins, e, normalmente, há bem pouco dinheiro sobre a mesa. Depois que entrei na sala de jogo (a primeira vez na vida), fiquei por algum tempo sem me decidir a jogar. Além disso, eu era comprimido pela multidão. Mas, ainda que estivesse sozinho, penso que iria embora quanto antes e não começaria a jogar. Batucava-me o coração, confesso, e meu estado não era de sangue-frio; já sabia com certeza – há muito o decidira – que não sairia sem maiores novidades de Roletemburgo; algo além de radical e definitivo tinha que suceder indefectivelmente em meu destino. Era preciso, e assim seria. Por mais ridículo que fosse o fato de eu esperar tanto da roleta, tenho a impressão de ser ainda mais ridícula a opinião rotineira, por todos aceita, de que é estúpido e absurdo esperar algo do jogo. E por que há de o jogo ser pior do que qualquer outro meio de adquirir dinheiro, como, por exemplo, o comércio? É verdade que, em cem jogadores, ganha apenas um. Mas que tenho eu com isso?”

Estas reflexões de Aleksiéi o movem durante a narrativa, dividido entre o jogo e o amor por Polina, filha do general para quem trabalha. A vida de Aleksiéi acaba se confundindo com o jogo, em determinado momento nada mais importa, a não ser estar ao lado da roleta.

“Possuído de uma espécie de febre, empurrei todo aquele monte de dinheiro sobre o vermelho – e, de repente, voltei a mim! E uma única vez em toda aquela noite, enquanto durou o jogo, o frio do medo me perpassou o corpo e se refletiu num tremor de pernas e das mãos.”

É um relato cruel, carregado da percepção que Dostoiévski tinha de seu próprio vício e das pessoas que o cercavam. Um jogador reflete, como sempre, o profundo sentimento de ironia e decadência que o escritor russo infligia a suas personagens.

O fascínio pelo automóvel

Assisti à cena a seguir duas vezes, no restaurante onde almoço. Um senhor de meia-idade está sentado próximo à rua, a cadeira e a mesa quase na beirada do meio-fio. Ao seu lado, um imponente carro importado. Para ficar próximo ao seu carro, enquanto toma cerveja, o feliz proprietário desrespeita leis de trânsito. O restaurante fica em uma praça e o carro está parado na esquina da rua à direita. A traseira está tomando parte da rua que contorna a praça. O motorista que quiser virar à direita, deve fazer delicada manobra, desviando da traseira do carro estacionado de forma irregular. Além disso, o carro está parado exatamente em cima da faixa de pedestre, quem atravessa a rua deve se desviar do automóvel para subir no passeio. Para admirar orgulhoso o carro, enquanto toma sua cerveja, o feliz proprietário desrespeita leis básicas de trânsito e de convivência em sociedade. É como se dissesse: “que se danem os outros, preciso ficar ao lado do meu carro.” E o pior: quando acabar de beber, vai embora dirigindo. A vida dos outros também não importa muito.

É cena comum em portas de bares e restaurantes. O carro, esse estranho objeto de desejo, deve ficar à vista do seu dono. E para isso vale parar em locais proibidos, em cima dos passeios, na porta de garagem, em frente a pontos de ônibus. A publicidade reforça esses absurdos comportamentos ao trabalhar nas mais diversas campanhas conceitos de status, poder, glamour e ostentação. Antiga campanha dos Postos Ipiranga anunciava: “Para os apaixonados por carro, tudo.”

Sábado, romance de Ian McEwan, narra um dia na vida de Henry Perowne, importante neurocirurgião inglês. É sábado, logo pela manhã o médico pensa ver um acidente de avião. Ao sair de casa para jogar squash, o médico se depara com uma passeata contra a guerra do Iraque. Nesse trajeto, ele se rende ao fascínio de seu carro luxuoso, “um Mercedes cor prata S500, com estofamento de cor creme”.

Enquanto dirige, o médico pensa sobre o carro: “é apenas um componente sensual daquilo que ele considera como o seu quinhão super generoso dos bens do mundo.” Ele relembra de uma pescaria: “Numa tarde úmida, ao olhar sobre o ombro, enquanto lançava a linha, Henry viu seu carro a cem metros de distância. Estacionado em linha oblíqua, numa rampa da trilha, colhido por uma luz suave, contra o fundo formado por uma bétula, uma urze florida e o céu negro trovejante – a concretização de uma visão de publicitário – e sentiu, pela primeira vez, uma doce e inebriante alegria de posse.”

O escritor Ian McEwan desenvolve a seguir, essa visão de publicitário: “Como os fabricantes pretendiam e prometiam, o carro tornou-se uma parte dele.” Em outro trecho da narrativa, ao descrever as sensações do médico dirigindo seu carro, o escritor reproduz sarcasticamente clichês das propagandas de carros.

“Ele liga o rádio, que toca aplausos contínuos, respeitosos, enquanto ele manobra para fora da garagem, deixa o portão de aço baixar, às suas costas… . Desavergonhadamente, sempre desfruta a cidade de dentro do seu carro, onde o ar é filtrado e o som de alta-fidelidade confere um páthos aos detalhes mais modestos – um trio de cordas de Schubert engrandece a rua estreita por onde ele agora desliza.”

Esse momento publicitário do proprietário dentro de seu imponente automóvel termina com um acidente banal, quase insignificante, mas que vai desencadear uma série de acontecimentos inesperados no dia do médico. Ao sair do carro, ele vai se defrontar com a realidade das ruas, realidade que a maioria dos publicitários que anunciam automóveis parece não conhecer.

Em busca do nome

Escolher nome de empresas e produtos não é tarefa das mais fáceis para os profissionais de criação. Principalmente se levarmos em consideração as orientações dos livros de marketing e posicionamento: o nome tem que resumir os principais atributos da empresa, definir o posicionamento, ser curto e sonoro, de fácil memorização etc etc.

A verdade é: todo bom nome que você pensa já existe, alguém já teve a brilhante idéia antes de você. A solução então é partir para as soluções mais fáceis e que, no fundo no fundo, não fazem mal para ninguém: sobrenome do dono, nome da filha do dono, iniciais dos familiares do dono, primeiras letras dos nomes dos sócios, junção de sobrenomes dos sócios. Ou então contar com aquela bendita inspiração e com uma dose muito grande de sorte para o nome não estar registrado. Como na pequena história a seguir.

No início da década de 90, eu trabalhava em uma das maiores agências de propaganda de Belo Horizonte. Um grande empresário de Minas Gerais contratou a agência para o lançamento de uma nova marca de leite no mercado. Nosso trabalho envolvia projeto de comunicação completo: criação de nome, marca, slogan, embalagens, campanha de divulgação. Rapidamente chegamos ao resultado que agradou a todos: Vereda.

Parecia aquele trabalho fadado ao sucesso, pois tudo aconteceu naturalmente, com o cliente entusiasmado, aprovando todo o processo sem contestação. Vereda!

Até que, poucos dias antes do lançamento oficial, o profissional de atendimento da agência pesquisou se o nome já estava registrado. A notícia caiu como uma bomba: Vereda já estava registrado por outra empresa de laticínios. Ela não usava o nome, mas registrou para garantir a marca em futuros lançamentos.

Desespero é a palavra neste momento. A poucos dias do lançamento do leite, não tínhamos nem nome mais. O trabalho começou do zero. Passamos uns dois dias no famoso estágio do brainstorm e nada. Ninguém da criação conseguia pensar em nada. Enquanto isso, o atendimento tentava acalmar o cliente.

O diretor de criação convocou, então, todo mundo para trabalhar no projeto: redatores, diretores de arte, arte-finalistas, secretárias, telefonistas, office-boy, até para o ascensorista a gente pedia sugestões. Nada. Gostávamos tanto de Vereda que deu bloqueio geral.

Em cima da hora, prazo estourado, a criação inteira se reuniu para um esforço final, o último suspiro. Nada. O diretor de criação olhou para um, para outro, para a janela, para o alto e desabafou:

–  E se essa porra desse leite se chamar Dona Vaca.

Silêncio total na sala.  Olhares começaram a se cruzar e cerca de trinta segundos depois se ouviu a voz tímida de alguém:

– Dona Vaca.

O diretor de criação continuava em silêncio. A diretora de arte arriscou:

– A marca podia ser uma vaquinha pastando. Assim, embalagem bem limpa e só uma vaquinha marrom pastando.

O leite já não existe mais. Desapareceu nesse turbilhão de marcas que tomou conta do mercado com a era da globalização. Mas muita gente se lembra de um leite chamado Dona Vaca. O cliente ficou tão entusiasmado com o novo nome que aumentou a verba de divulgação do produto. E mais: essa simplicidade absurda para uma marca de leite não estava registrada por nenhuma empresa concorrente.

Dona Vaca foi lançado, a embalagem era uma vaquinha marrom pastando e rapidamente virou sucesso de vendas, principalmente devido às crianças que, encantadas com a embalagem, influenciavam a compra das mães.

Até hoje não sei se o diretor de criação tirou o nome da cartola, ficou pensando nele durante algum tempo, avaliando se valia a pena, se era bom, ou se realmente foi um tiro no momento de desespero, essas idéias nas quais nem você mesmo acredita. Enfim, coisas da criação.