Lola

1957. A jovem e bela Lola é cantora e prostituta em um bordel. Seu amante e protetor é Schuckert, importante construtor da região da Baviera que consegue contratos corrompendo os principais políticos, incluindo o prefeito, frequentador assíduo do cabaré. Esse lucrativo esquema ameaça ser rompido com a chega do honesto Von Bohm para assumir o cargo de Secretário de Obras da cidade. 

Fassbinder, como uma homenagem, faz a releitura do clássico O anjo azul (1930). Após ser ofendida em uma noite por Schuckert, Lola começa um jogo de sedução com Von Bohm, escondendo sua condição. O honesto cidadão se apaixona pela cantora e as reviravoltas da trama incluem a subversão de seus princípios morais e éticos.

O tema do filme é a Alemanha do pós-guerra que busca se reerguer economicamente, tem que reconstruir suas cidades. O bordel é o símbolo político deste tempo, lugar onde todos se vendem, incluindo políticos, empresários, idealistas como o socialista Esslin e os íntegros como Von Bohm. 

Lola (Alemanha, 1981), de Rainer Werner Fassbinder. Com Barbara Sukowa (Lola), Armin Mueller-Stahl (Von Bohm), Mario Adorf (Schuckert), Mathias Fuchs (Esslin).

Darling – A que amou demais

Diana Scott começa a se projetar na carreira de modelo, se tornando cada vez mais ambiciosa. Ela conhece Robert, um culto apresentador de programa de entrevistas na televisão. Os dois são casados, se apaixonam e, após as separações, vivem uma tumultuada relação, marcada pelas infidelidades de Diana. 

Darling é um marco cinematográfico da swinging London, termo usado para descrever a efervescência cultural e os modernos hábitos de costumes, incluindo a liberdade sexual, de Londres durante a década de 60. 

O enigmático e charmoso Miles introduz Diana nos clubes e apartamentos fechados, espécie de reduto onde os libertinos podem se revelar, se despindo da face que preservam diante da conservadora sociedade inglesa. O subtítulo em português retrata com perfeição a personagem (Julie Christie conquistou o Oscar de Melhor Atriz): Diana se entrega às paixões como quem precisa simplesmente viver, enquanto luta consigo mesma, pois ela deseja apenas viver com Robert, seu grande amor. 

Darling – A que amou demais (Darling, Inglaterra, 1965), de John Schlesinger. Com Julie Christie (Diana), Dick Bogarde (Robert). Laurence Harvey (Miles), Roland Curram (Malcolm), José Luis de Villalonga (Cesare). 

Duas ou três coisas que eu sei dela

Juliette (Marina Vlady) é dona-de-casa, moradora de um novo conjunto habitacional na periferia de Paris. Para satisfazer seus sonhos de consumo (seu marido é um acomodado mecânico de carros, cujo hobby é sintonizar estações de rádio distantes), Juliette se prostitui durante as tardes. 

O filme é um dos marcos da passagem de Godard para um cinema abertamente experimental, deixando para trás o cinema de fluxo narrativo. Fragmentos de imagens icônicas, representativas da sociedade de consumo, se sucedem na tela quase como um break de intervalos comerciais. A famosa sequência do lava-jato coloca em evidência a estética publicitária, centrando o olhar do espectador no belo carro vermelho, enquanto as personagens transitam ao fundo, quase como coadjuvantes. 

“A prostituição de Juliette é uma caracterização geral da natureza dessa sociedade nascente: transformação de tudo e de todos em mercadoria. As rotas para a abstração – citações, monólogos, inserts, encontros e entrevistas – abertas pela narração no percurso da personagem exploram essa nova paisagem e situação humana.” – Leandro Saraiva. 

Duas ou três coisas que eu sei dela (Deux ou trois choses que je sais d’elle, França, 1966), de Jean-Luc Godard.

Referência: Godard inteiro ou o mundo em pedaços. Eugênio Puppo e Mateus Araújo (organização). Catálogo produzido pela Fundação Clóvis Salgado para a retrospectiva Jean-Luc Godard, exibida na Sala Humberto Mauro. 

O ornitólogo

Fernando está sozinho na selva, observando pássaros. Durante uma travessia de caiaque pelo rio, ele é surpreendido pela correnteza e se acidenta. Quando acorda, na margem, está perdido. 

É o início de uma jornada espiritual, metafísica, durante a qual Fernando se defronta com pessoas estranhas e perigosas. Duas jovens chinesas, fanáticas religiosas, o amarram e ameaçam castrá-lo. Um jovem mudo, chamado Jesus, é pastor de cabras. Os dois vivem um momento amoroso que termina tragicamente. Um grupo de amazonas nuas se dispõe a guiar o ornitólogo para fora da floresta, mas ele recusa. 

O filme de João Pedro Rodrigues é uma releitura do mito português de Santo Antônio. A jornada de Fernando é uma jornada de autodescoberta, transformação, se entrega à espiritualidade em uma comunhão entre homem e natureza. A obra exige a entrega contemplativa e espiritual que o cinema incentiva. 

O ornitólogo (Portugal, 2016), de João Pedro Rodrigues. Com Paul Hamy (Fernando), João Pedro Rodrigues (Antonio), Xelo Cagiao (Jesus), Han Wen (Fei), Chan Suan (Ling).

Kung Fu Master!

Agnès Varda envereda por um tema ousado, polêmico, diria até mesmo proibido. O amor de uma mulher de cerca de 40 anos por um adolescente. Durante uma festa em sua casa, promovida por sua filha Lucy, Mary-Jane fica encantada por Julien, colega de escola de Lucy. Ela decide que precisa vê-lo novamente e começa uma série de encontros com o garoto, a princípio, despretensiosos, mas que caminham cada vez mais e mais para a paixão mútua. A relação se concretiza durante uma viagem de férias em Londres, depois, Mary-Jane e Julius partem para uma estada em uma ilha na Inglaterra.

Jane Birkin e Charlotte Gainsbourg, mãe e filha na vida real, transpõem essa condição para o filme. A relação entre as duas se anuncia cada vez mais conflituosa, à medida que o caso da mãe se revela. O garoto Julien é interpretado por Mathieu Demy, filho de Agnès Varda e Jacques Demy. 

Apesar de controverso, Kung-Fu Master traz a sensibilidade característica da diretora francesa. Em um determinado momento, a mãe de Mary-Jane diz à filha que ela deve se entregar à paixão, apesar de tudo caminhar para a inevitável punição. 

Kung-Fu Master! (Kung-Fu Master! Le petit amour, França, 1988), de Agnès Varda. Com Jane Birkin (Mary-Jane), Charlotte Gainsbourg (Lucy), Mathieu Demy (Julien), Lou Doillon (Lou).  

O império da paixão

Após o aclamado e polêmico O império dos sentidos, Nagisa Oshima fez essa obra centrada em um triângulo amoroso movido pela paixão, crime e culpa. É também uma história de fantasmas.

Em uma vila japonesa do final do século XIX, a bela e desejada Seki é casada com Gisaburo, um condutor de riquixá. Toyo, um jovem rebelde e inconsequente, seduz Seki e os dois começam um tórrido relacionamento sexual (atenção para a cena em que Toyo pede que a amante raspe suas partes íntimas). 

 Não é spoiler: em histórias assim, o marido sempre é assassinado. Essa virada no roteiro provoca a ruína dos amantes, cada vez mais entregues à paixão e à culpa. Seki começa a ser assombrada pelo fantasma do marido que implora para que o tirem do poço onde seu cadáver foi jogado. A partir daí, o destino trágico dos amantes está traçado. Mais uma vez, o erotismo do cinema de Nagisa Oshima provoca o espectador com violência. 

O império da paixão (Ai no borei I, Japão, 1978), de Nagisa Oshima. Com Kazuko Yoshiyuki (Seki), Tatsuya Fugi (Toyoji), Takahiro Tamura (Gisaburo).

O monastério

O filme abre com uma sequência cruel: no altar de uma igreja, um padre está prestes a executar um bebê recém-nascido. Ele é impedido por policiais que entram na igreja e matam o padre. Corta para trinta anos depois. 

Marek, um policial disfarçado de padre, chega a um monastério, famoso por seus casos de exorcismo. Marek precisa investigar o desaparecimento de jovens mulheres da região que, possivelmente, são as vítimas dos casos de exorcismo. 

A sequência inicial aponta a possível ligação entre Marek e uma seita maligna, formada pelos padres do monastério. A narrativa é recheada de cenas brutais, até mesmo repulsivas (atenção para o alimento impingido ao falso padre). A virada de roteiro perto do final do filme provoca o tradicional banho de sangue dos filmes de terror contemporâneos. 

O monastério  (Hellhole, Polônia, 2022), de Bartosz M. Kowalski. Com Piotr Zurawski (Marek), Olaf Lubaszenko (Padre Andrzej), Sebastian Stankiewicz (Padre Monk).

O estrangeiro

O canto do cisne do aclamado diretor Satyajit Ray é um tratado filosófico e humanista sobre as relações familiares. O filme é adaptado de um conto escrito pelo próprio diretor. 

Anita Bose é casada com Sudhindra, um próspero industrial indiano. O casal tem um filho adolescente, Satyaki. A trama abre com Anita lendo para seu marido e filho a carta que acabou de receber de seu tio Mitra, desaparecido há mais de vinte anos. O tio pede que a sobrinha o receba para uma visita de uma semana. No entanto, pairam dúvidas sobre a identidade deste tio desconhecido. 

A narrativa é centrada neste núcleo de quatro personagens, tendo como cenário a casa da família Bose. Mitra se revela, pouco a pouco, um homem fascinante, de vasta cultura adquirida em suas viagens pelo mundo. O jovem Satyaki é o primeiro a acreditar que tem um tio-avô, não escondendo sua admiração pelo contador de histórias. Cabe a Mitra vencer, passo a passo, a resistência de sua sobrinha e, principalmente, do patriarca da família. 

O grande trunfo da narrativa são os diálogos intimistas e filosóficos que se transformam, muitas vezes, em longos debates sobre religião e misticismo, sobre tribos indígenas, sobre a injusta sociedade de castas indianas. Mitra é um personagem cético em relação à humanidade. Ele busca sentido para a vida estudando as tribos primitivas de várias partes do mundo. O final é terno e encantador, aponta o desprendimento necessário para se entregar aos pequenos sentimentos entre família.   

O estrangeiro (Agantuk, Índia, 1991), de Satyajit Ray. Com Utpal Dutt (Manomohan Mitra), Dipankar Dey (Sudhindra Bose), Mamata Shankar (Anita Bose), Bikram Bhattacharya (Satyaki Bose).

O dinheiro

Em seu último filme, Robert Bresson retoma princípios básicos de seu cinema, em termos narrativos e estéticos. A trama tem semelhanças com seu clássico extremo, O batedor de carteiras.

Um jovem, em Paris, pede adiantamento da mesada ao seu pai. O pedido é negado, o jovem recorre a um amigo e os dois resolvem passar adiante uma nota falsa de 500 francos. O crime se dá em uma loja de equipamentos fotográficos. No mesmo dia, o dono da loja repassa a nota como pagamento a Yvon, um bombeiro que acaba de prestar serviços na loja. 

Essa trama aparentemente simples, de uma nota falsa que circula de mão em mão na cidade, ganha contornos trágicos quando Yvon, sem saber da falcatrua, paga suas despesas em uma lanchonete com a nota. Ele é preso, julgado, perde seu emprego e, sem dinheiro, envereda pelo mundo do crime. 

Bresson aplica em O dinheiro (adaptado de um conto de Tolstoi) seu famoso radicalismo na direção de atores. Os personagens agem quase como autômatos, sem demonstrar emoções como tristeza ou raiva. Yvon aceita seu destino trágico com uma resignação fria, sua transformação em um honesto trabalhador, em um adorável pai de família, no mais cruel assassino, acontece de forma natural. A decupagem simples, direta, os cortes secos, uma imagem sucedendo à outra como fotos que passam diante de nossos olhos – estamos diante, pela derradeira vez, da genialidade simples de Robert Bresson. 

O dinheiro (L’Argent, França, 1983), de Robert Bresson. Com Christian Patey (Yvon Targe), Vincent Ristenucci (Lucien), Caroline Lang (Elise). 

O amor dos leões

Agnès Varda realizou este filme durante sua estada em Los Angeles, em 1969, centrando a narrativa em um triângulo amoroso, formado por Viva (a atriz de Andy Warhol, interpretando ela mesma), Jim e Jerry. Sexo a três, amor livre, viver os dias entre o mar, o sol e as piscinas, tudo indica o aclamado verão do amor que marcou a rebeldia juvenil dos anos 60. 

Em meio a esta utopia, a diretora insere imagens dos astros e estrelas de Hollywood: fotos, cartazes, a famosa calçada da fama, citações, segundo Viva “a pressão aqui em Hollywood é tão grande, vinda de todas aquelas pessoas mortas.”

Como pano de fundo, a própria Agnès Varda participa da trama, pois está tentando terminar um filme com a estrela Shirley Clarke, que passa por uma crise profissional e pessoal que resulta em uma overdose de remédios. 

O amor dos leões é um retrato utópico e realista (os três protagonistas vivem em frente à TV acompanhando os impactos políticos do assassinato de Rober Kennedy) do final dos anos 60, quando parece que todo a rebeldia caminha para o erro.

O amor dos leões (Lions love (…and lies), EUA, 1969), de Agnès Varda. Com Viva (Viva), James Rado (Jim), Gerome Ragni (Jerry), Shirley Clarke (Shirley).