Jogo da verdade

As crianças estavam sentadas em roda no centro do quintal. A garrafa vazia rodou pela primeira vez. O bico apontou para Esther.

– Você já beijou?

– Não. – ela abaixou os olhos, mas de imediato se deu conta de que não podia mentir.

Nas tardes do último inverno, ela se deitava no sofá da sala para escutar um dos discos de sua mãe. Como eram dias frios, escolhia entre Frank Sinatra e Nat King Cole, mesmo sabendo que não combinavam com a sua idade.

Por volta das cinco da tarde, Pedro chegava para o dever de casa. O amigo era bom em história, tormento de Esther na escola. Era só aproximar o final do bimestre e a menina se desesperava, corria para anotações, abria livros, buscava notas nas margens. Em vão. Ela nunca se lembrava quando terminou o Império Otomano. Fechava o livro com raiva diante da inutilidade daquilo pois, pensava, eles nem sequer existem mais como nação.

1922, sussurrou Pedro ao seu lado, durante a prova. A partir deste dia, os dois faziam, pelo menos uma vez por semana, releitura das aulas de história. Sempre no fim de tarde, quando a mãe da garota tinha tempo para se sentar com os dois na mesa da sala, não para ajudar nas lições, para vigiar. Imposição do pai, senhor de bigodes espessos, destes que amedrontam até mesmo italianos da Sicília, de onde imigrara jovem.

Todo dia antes de dormir, a mãe se sentava no sofá da sala e colocava um disco do Frank Sinatra, o som baixinho para não incomodar o italiano que roncava no quarto. Quando a mãe se recolhia, Esther se sentava no mesmo lugar e, de olhos fechados, sonhava com a vida sem pai.

Naquela tarde, Pedro chegou um pouco mais cedo, a mãe ainda fazia a sesta. Sentaram-se na mesa como de costume e abriram o livro no capítulo sobre a primeira guerra mundial. Pedro começou a discorrer sobre as batalhas nas trincheiras, sobre baionetas, inundações e ratos. A menina não escutava. Seus olhos viam os lábios de Pedro em uma profusão de palavras. Sem mais nem menos, se levantou, segurou o garoto bruscamente pelas mãos, fazendo-o se levantar e puxou a cabeça dele de encontro à sua. Foi um estupro de línguas. Esther não parava de vasculhar a boca de Pedro, os lábios se mordendo.

A história passou a se repetir dia após dia, sempre na hora da sesta da mãe. Quando a mãe acordava, os amigos estavam sentados em lados opostos da mesa, livros abertos, em silêncio, compenetrados nos compêndios da formação do mundo contemporâneo.

A garrafa ameaçadora apontava para Esther. Eram cerca de quinze crianças na roda, todas vizinhas, cujos pais frequentavam as mesmas festas, o mesmo bar. Aline, a menina de língua solta, era quem espalhara o boato sobre a brincadeira de médico que os garotos fizeram certa noite no barracão da casa de Dona Iolanda. O diz-que-me-disse se espalhou, os pais fizeram reunião a portas fechadas, os filhos foram proibidos de se encontrar. Um deles frequentou as aulas dos dias seguintes com o braço esquerdo na tipoia.

– Sim. – respondeu Esther, levantando os olhos em direção a Pedro, onde os deixou por eternos cinco segundos.

Dois dias depois, Pedro não apareceu para a lição da tarde. A mãe de Esther dava voltas e voltas pela casa, depois de acender quatro velas para a imagem de Nossa Senhora Aparecida. A maquiagem pesada não conseguia esconder as feridas no rosto. Perto das sete da noite, a mãe se trancou no quarto ao ouvir o barulho do portão da rua destrancando. Esther, deitada no sofá da sala, aumentou o som da vitrola. De olhos fechados, deixou a canção de Frank Sinatra entrar em seu corpo, a mão por baixo da almofada agarrada com força à faca de cozinha.

Cidade nua

A narrativa começa com uma das marcas do cinema noir: narração em off, enquanto entram cenas aéreas de Nova York, dos bairros, das ruas, pessoas transitando em metrôs, crianças brincando nas ruas… O projeto de Cidade nua nasceu de uma proposta ousada, claramente influenciada pela estratégia dos neorrealistas italianos que ganhavam fama neste período. 

“As origens deste filme são interessantes.Há muitas histórias, a que ouvi é que um jovem roteirista, Malvin Wald, procurou Mark Hellinger que era um colunista famoso de Nova York, com uma personalidade lendária, e propôs uma ideia radical. A equipe de produção de Hollywood sairia do estúdio, iria para as ruas de Nova York e filmaria um filme inteiro nas ruas de Nova York, para contar a história de uma investigação de homicídio.” – James Sanders.  

O cinema americano da década de 30 fugiu das ruas, as filmagens migraram quase inteiramente para os grandes estúdios de Los Angeles. Isso aconteceu em parte devido ao tamanho das câmeras e a complexidade de gravar som em ambientes externos. Nova York, berço do cinema americano, ficou abandonada nesta década pelos cineastas, afinal, já era uma metrópole pujante dia e noite, impossível para o recém inventado cinema sonoro filmar nessa cidade barulhenta. A estratégia usada pelos produtores era recriar bairros e ruas de Nova York dentro dos estúdios, usando cenas gravadas na cidade apenas como pano de fundo. 

O ponto forte de Cidade nua é usar a cidade como personagem, talvez a protagonista da película. A trama é tradicional no gênero noir: uma modelo é assassinada em seu quarto, durante a noite. Dois detetives, Don Muldoon (Barry Fitzgerald) e Jimmy Halloran (Don Taylor) cuidam do caso. Durante a investigação, andam por vários pontos da cidade, é um filme em movimento constante, é como se os detetives estivessem procurando a velha agulha no palheiro. 

A narração em off interage com os personagens. Conversa com moradores da cidade, em uma cena, diz para uma jovem no metrô que lê sobre o assassinato: “não precisa se preocupar, isso não acontece com estenógrafas.” Em outras, se dirige ironicamente ao detetive: “se quiser achar o criminoso, você precisa andar, andar…” 

Segundo o crítico James Sanders, o filme retrata a Nova York das pessoas comuns, antes do advento da TV, quando a rua era habitat natural de homens, mulheres, crianças, mas em algum quarto, na madrugada noir, um crime poderia acontecer. Em Lower East Side, onde grande parte da trama foi filmada, neste período viviam cerca de um milhão de pessoas.  

No final, a perseguição do criminoso na Williamsburg Bridge é um dos grandes momentos do cinema noir, do cinema que usa as ruas para afirmar um dos princípios básicos da sétima arte: o movimento.

Cidade nua (The naked city, EUA, 1948), de Jules Dassin. Com Barry Fitzgerald, Howard Duff, Dorothy Hart.

Intolerância

“Dickens usa montagem alternada e eu também vou usar” Com essa afirmação, feita nos preparativos da filmagem de Intolerância, D. W. Griffith revolucionou o cinema em 1916. O filme narra quatro histórias: a queda da Babilônia; a paixão de Cristo; o massacre de protestantes por católicos na noite de São Bartolomeu, na França; a história de um jovem criminoso que tenta se redimir e é injustamente condenado à morte por um crime que não cometeu – passada nos EUA dos primeiros anos do século XX. 

A revolução acontece na montagem alternada, pois os episódios são apresentados ao espectador de forma intercalada, fragmentos de cada história, forçando o espectador a guardar na memória onde cada uma das histórias foi cortada, cabendo a cada um sentado na cadeira de cinema montá-las linearmente. Com quase quatro horas de duração, a ousadia de Griffith foi um fracasso de bilheteria, talvez os ingênuos frequentadores de cinema da época não estivessem preparados para tanto arroubo linguístico. Os produtores, então, exibiram as duas principais histórias separadas, montadas de forma linear: a queda da Babilônia e a trama do jovem condenado à morte. 

Apesar do fracasso nas bilheterias e da divisão do filme, a comunidade cinematográfica mundial elegeu o filme original como uma obra-prima, cuja influência se estendeu à União Soviética, motivando experimentações que se tornaram célebres na montagem do cinema revolucionário de Eisenstein. 

“Para entender Griffith, deve-se visualizar uns Estados Unidos compostos de mais do que visões de automóveis velozes, trens aerodinâmicos, fios de telégrafo, inexoráveis correias de transmissão. É-se obrigado a compreender este segundo rosto dos Estados Unidos também – os Estados Unidos tradicionais, patriarcais, provincianos. E então se ficará consideravelmente menos espantado com a vinculação entre Griffith e Dickens. Os fios desses dois Estados Unidos são entrelaçados no estilo e personalidade de Griffith – como nas mais fantásticas de suas sequências de montagem paralela.” – Sergei Eisenstein. 

Intolerância (Intolerance, EUA, 1916), de D. W. Griffith. Com Lillian Gish (mãe que balança o berço), Mae Marsh (querida), Robert Harron (rapaz), Howard Gaye (Cristo), Margery Wilson (Olhos Castanhos), Constance Talmadge (garota da montanha), Alfred Paget (Baltazar), George Siegmann (Ciro).  

Referência: D. W. Griffith. Intolerância. Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema. Cássio Starling Carlos e Pedro Maciel Guimarães. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2018