Da biblioteca da filha

Não sou leitor assíduo de livros policiais. Comprei, há muitos anos, coleção da Agatha Christie e os livros ficaram empoeirados nas estantes. Até que minha filha descobriu o gênero e leu um por um. De Agatha Christie ela passou a Arthur Connan Coyle, entusiasmada com Sherlock Holmes. Acabou como leitora voraz de romances policiais, uma vez por semana aparece com livro novo, incluindo exemplares da Coleção Negra, livros sedutores, belas encadernações de variados autores do gênero.

O livro do assassino, de Jonathan Kellerman, cumpre com precisão as promessas de uma envolvente narrativa policial. O psicólogo Alex Delaware recebe pelo correio álbum repleto de fotos de cenas de crimes, destas que fazem parte dos arquivos policiais, tiradas logo após os assassinatos. Delaware mostra as fotos para um amigo policial, Milo Sturgis. Ao ver as fotos de uma jovem estuprada e assassinada, o policial se recorda do caso: Jane Ingalls, 17 anos, violentada, estrangulada, queimada e retalhada. Um caso de 20 anos atrás não resolvido por Milo Sturgis e seu parceiro.

O livro fora enviado de propósito, como motivação para Milo reabrir, por conta própria, as investigações. Boa parte das 524 páginas de O livro do assassino transcorre com a dupla investigando o passado das pessoas possivelmente envolvidas no crime. O ângulo principal da narrativa acontece pelos olhos do psicólogo que narra em primeira pessoa o rumo das investigações. Em outros momentos, a terceira pessoa assume a narração para seguir os passos de Milo Sturgis. Este interessante recurso aumenta o suspense, pois provoca no espectador a sensação de montagem paralela, como no cinema.

A técnica é importante também para sugestionar como a homossexualidade do detetive Milo Sturgis poderia ter interferido nas primeiras investigações do assassinato, revelando o preconceito agressivo dentro da polícia de Los Angeles. As revelações caminham para questões comuns no gênero policial: corrupção na polícia, atos criminosos motivados por drogas, o mundo sem limites dos jovens endinheirados na meca do cinema, prostituição e abuso sexual de menores.

A princípio, o leitor fica confuso pois personagens aparecem e desaparecem durante as investigações. Aos poucos, porém, as peças vão se juntando e, se você tiver memória acostumada a este tipo de narrativa, percebe que as conexões são bem maiores do que se imaginava para um crime sexual. Por isso, o clímax não é tão revelador, vale mais pela ação desencadeada nos últimos momentos.

Aí sim, este leitor desacostumado pode ser fisgado pelo gênero que já proporcionou obras primas para o cinema e se tornar frequentador da biblioteca da filha.

Memórias do subsolo

Memórias do subsolo, novela publicada em 1864, é narrada em primeira pessoa por um anônimo. O personagem revela com ironia e desprezo a amargura em que vive. Dostoiévski usa o narrador para caracterizar a decadência de uma geração. Na introdução, o autor alerta:

“Tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários. Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, mas devem existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou. O que pretendi foi apresentar ao público, de modo mais evidente que o habitual, um dos caracteres de um tempo ainda recente. Trata-se de um dos representantes da geração que vive os seus dias derradeiros.”

Essa geração derradeira é representada por um homem sem esperanças a respeito do mundo e de si mesmo. Começa sua história apresentando-se: “Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado.”

Dostoiévski colocou na mente de seu personagem indagações perturbadoras. O narrador reflete:

“Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos seus amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e assim mesmo em segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio, e, em cada homem honesto, acumula-se um número bastante considerável de coisas no gênero. E acontece o seguinte: quanto mais honesto é o homem, mais coisas assim ele possui. Pelo menos, eu mesmo só recentemente me decidi a lembrar as minhas aventuras passadas, e, até hoje, sempre as contornei com alguma inquietação. Mas agora, que não apenas lembro, mas até mesmo resolvi anotar, agora quero justamente verificar: é possível ser absolutamente franco, pelo menos consigo mesmo, e não temer a verdade integral?”

Essa dúvida fecha o longo desabafo inicial do personagem, quando ele resolve contar a sua história. Uma história sobre personagens do subsolo (Érico Veríssimo fez incursão parecida em Noite). Talvez nem uma história, crueldades do mundo jogadas no papel. Narradas desse jeito profundo e simples que fazem de Dostoiévski porto-seguro na escolha de boa leitura.

“Agora está nevando, uma neve quase molhada, amarela, turva. Ontem nevou igualmente e dias atrás, também. Tenho a impressão de que foi justamente a propósito da neve molhada que lembrei esse episódio que não quer agora me deixar em paz. Pois bem, aí vai uma novela. Sobre a neve molhada.”

Ressureição

Ressurreição, primeiro romance de Machado de Assis, foi publicado em 1872. Nas primeiras páginas, já se percebe o estilo: o romantismo, a conversa com o leitor, a refinada ironia, as descrições sedutoras de personagens e situações.

“Félix contemplou-lhe longo tempo aquele rosto pensativo e grave, e involuntariamente foram-lhe os olhos descendo ao resto da figura. O corpinho apertado desenhava naturalmente os contornos delicados e graciosos do busto. Via-se ondular ligeiramente o seio túrgido, comprimido pelo cetim; o braço esquerdo, atirado molemente no regaço, destacava-se pela alvura sobre a cor sombria do vestido, como um fragmento de estátua sobre o musgo de uma ruína. Félix recompôs na imaginação a estátua toda, e estremeceu. Lívia acordou da espécie de letargo em que estava. Como também estremecesse, caiu-lhe o leque da mão. Félix apressou-se em apanhar-lho.”

O que mais me impressiona neste início da leitura de Ressurreição é o posfácio. Machado de Assis, então com 33 anos, se dirige com humildade à crítica literária, pedindo benevolência e compreensão na leitura de seu primeiro romance.

“Não sei o que deva pensar deste livro; ignoro sobretudo o que pensará dele o leitor. A benevolência com que foi recebido um volume de contos e novelas, que há dous anos publiquei, me animou a escrevê-lo. É um ensaio. Vai despretensiosamente às mãos da crítica e do público, que o tratarão com a justiça que merecer.”

Não sei se a crítica, o público (e o próprio Machado de Assis) tinham já a noção de estar diante do desenvolvimento de um gênio da literatura. Seria Machado de Assis ainda um autor titubeante, tentando esconder sua insegurança na modéstia? Ou estaria já ensaiando uma de suas marcas literárias: a ironia com seu próprio trabalho e com os dos outros.

“A crítica desconfia sempre da modéstia dos prólogos, e tem razão. Geralmente são arrebiques de dama elegante, que se vê ou se crê bonita, e quer assim realçar as graças naturais. Eu fujo e benzo-me três vezes quando encaro alguns desses prefácios contritos e singelos, que trazem os olhos no pó da sua humildade, e o coração nos píncaros da sua ambição. Quem só lhes vê os olhos, e lhes diz verdade que amargue, arrisca-se a descair no conceito do autor, sem embargo da humildade que ele mesmo confessou, e da justiça que pediu.”

“Ora pois, eu atrevo-me a dizer à boa e sisuda crítica, que este prólogo não se parece com esses prólogos. Venho apresentar-lhe um ensaio em gênero novo para mim, e desejo saber se alguma qualidade me chama para ele, ou se todas me faltam, – em cujo caso, como em outro campo já tenho trabalhado com alguma aprovação, a ele volverei cuidados e esforços. O que eu peço à crítica vem a ser – intenção benévola, mas expressão franca e justa. Aplausos, quando os não fundamenta o mérito, afagam certamente o espírito, e dão algum verniz de celebridade; mas quem tem vontade de aprender e quer fazer alguma cousa, prefere a lição que melhora ao ruído que lisonjeia.”

Se a crítica leu este prólogo, deve ter se sentido incapaz até mesmo de emitir julgamentos. Deve ter simplesmente manifestado reverência ao nascimento do maior escritor da língua brasileira ou a um operário, como Machado de Assis se definiu.

“Não quis fazer romance de costumes; tentei de uma situação e o contraste de dous caracteres; com esses simples elementos busquei o interesse do livro. A crítica decidirá se a obra corresponde ao intuito, e sobretudo se o operário tem jeito para ela.”

A imprensa e o caos na ortografia

Eu gostaria de falar com a Srª Enyr.

– O Sr. Enyr não está.

– Quem está falando?

– Anna, a esposa dele.

Meu pai, Enyr com y. Minha mãe, Anna com dupla consoante. Essa situação aconteceu diversas vezes na minha casa e a mãe sempre se divertiu com o nome feminino de meu pai.

Segundo Marcos de Castro, autor do livro A imprensa e o caos na ortografia, essas estranhas grafias de nomes são resultado da “orgia ortográfica dos cartórios brasileiros” que se submetem aos caprichos dos pais e registram nomes próprios com letras que não existem na língua portuguesa (y e w – ou não existiam antes da reforma ortográfica), nomes com dupla consoante ou os nomes mais esquisitos: “Em Uberaba, no Triângulo Mineiro, vivia nos anos 1930 um casal em que o marido se chamava Guiomar e a mulher Euclides…”

As críticas mais contundentes do autor são dirigidas à imprensa que cedeu a essa orgia. Marcos de Castro informa que antes de 1970 havia um compromisso respeitado por todos os jornais brasileiros em escrever os nomes próprios de acordo com a língua portuguesa. Assim, nomes como Ulysses Guimarães (com y na certidão de nascimento) eram rigorosamente escritos na imprensa com i, Ulisses Guimarães. Isso evitava perguntas comuns como: “- Fulano, esse Luís é com s ou com z?”

Com o tempo, esse acordo deixou de existir e os jornais passaram a registrar os nomes nas matérias e entrevistas da forma que constam nas certidões, ou como as pessoas querem ser chamadas. Marcos de Castro cita um fato marcante no final da década de 70 como provável mudança desse comportamento:

“Um dia o general (Golbery do Couto e Silva) se queixou ao amigo (o jornalista Elio Gaspari), que diabo, o nome dele era com y no final, e o jornal grafava ‘Golberi’. (…) O General, acostumado desde 1964 ao arbítrio e a subverter o estabelecido, a desconhecer normas que não fossem as dele e de sua tropa no poder, sem dúvida insistiu. Tanto que um dia, por essa época, o copidesque recebeu uma ordem do editor-chefe (…): daquela data em diante, o nome do general passava a ser grafado Golbery, com y final.”

O livro é uma instrutiva coletânea de erros cometidos pela imprensa na grafia e verbalização de palavras e expressões. Na primeira parte, “A desordem da escrita”, o autor cita erros comuns cometidos pela imprensa e por órgãos públicos ao escrever: Ary Barroso, Theatro Municipal, chopp (marca da cerveja Brahma) ao invés de chope, Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores, no Rio de Janeiro).

“A desordem da fala” é o título da segunda parte da livro. Os locutores e repórteres de TV são criticados abertamente neste item, por pronunciarem futê-bol, por exemplo. O mais interessante é o capítulo siglas em inglês:

“A marca mais famosa era de uma empresa americana conhecida como RCA Victor, ou simplesmente RCA. Pois não havia desde o início um único brasileiro que dissesse ar-ci-ei. (…) A IBM (…) nunca foi ai-bi-ém, mas i-bê-eme. (…) A emissora BBC de Londres – e ninguém dizia bi-bi-ci. O FBI nunca foi éf-bi-ai.”

“Mas nos anos 90, um canal de televisão (…) resolveu transmitir os jogos de basquete da liga profissional dos Estados Unidos, a NBA. Só que ao ouvir a sigla em inglês ele se entusiasmou (o locutor da TV). E começou a falar ene-bi-ei para o público brasileiro.”

Marcos de Castro completa afirmando que a farra descambou de vez com a implantação da TV a cabo no Brasil:

“O canal de televisão da Metro (MGM) se anuncia como em-dgi-ém. Mas ainda não se chegou ao pior de todos, que é um certo canal eitch-bi-ou. Nesse caso, um único brasileiro em mil entenderá essa sigla. Pois bem sabe o caro leitor, que não é obrigado a aprender o alfabeto em inglês, que a tradução disso (HBO) soaria bem simplesinha aos nossos ouvidos, agá-bê-ó. (…) Não vamos nem falar no nome dos programas: i-ar (plantão médico), Ló & Order (Lei e Ordem), dezenas de outros. Realmente, não se fala mais português na rede de TV por assinatura, no Brasil.”

Na terceira parte, Marcos de Castro edita um pequeno dicionário de batatadas da imprensa.

“Não se enterra a alma. Ninguém que creia na existência dela discute isso. Por que então a Rede Globo teima em perturbar a paz dos que são enterrados usando a fórmula esdrúxula ‘o corpo de Fulano foi enterrado em…’”

A imprensa e o caos na ortografia brasileira é um livro que merece um lugar na escrivaninha como material de consulta. Mas em alguns casos é dar murro em ponta de faca. Os termos em inglês invadiram a língua portuguesa sem a menor cerimônia. Após ler o livro, fiz uma pequena pesquisa e percebi o óbvio: não existe mais nenhum título de séries de TV traduzido: Lost, Crossing Jordan, Heroes, Smallville, Star Trek, True Blood, Mad Men, American Idol, Brothers & Sisters, Desperate Housewives, Grey’s Anatomy, Breaking Bad, Game of Thrones…

Marcos de Castro afirma no seu livro que muito dessa “orgia” se deve a pretensas estratégias de marketing. E critica os publicitários:

“Tudo previsível, uma vez que os publicitários nunca se deram bem com a língua portuguesa”.

“E a língua da publicidade, como se sabe, não pode contar muito no espectro dos falantes, pois esse mundo é um mundo fechado, com linguagem própria – e inexpressiva exatamente por ser restrita, uma vez que no círculo específico dos publicitários se fala o portinglês.”

“Os publicitários não contam quando a referência é o vernáculo”.

Críticas sérias. É o caso de indagar: quem está exagerando, Marcos de Castro em seus ataques? ou os publicitários/profissionais de marketing em usar descaradamente o inglês para se comunicar com brasileiros

Referência: A imprensa e o caos na ortografia. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Record, 2008

Leitura de aeroporto

Sou um mineiro exagerado. O voo estava marcado para as cinco da tarde. Cheguei às duas horas. Fui para a livraria procurar uma revista de cinema para passar o tempo. Não sei o que está acabando, livrarias ou revistas de cinema. Livros de autoajuda e misticismo, guias de viagem despencavam pelas prateleiras, nada de revista de cinema. Um ou outro Saramago, Clarice Lispector, é verdade, mas eu queria leitura de aeroporto, sem pretensão, daquelas que você pode levantar o olho para o movimento.

Lá no canto da livraria, a salvação, uma pilha de pocket-books. E deleite dos deleites para mais de três horas de espera, Assassino Metido a Esperto, livro de contos policiais de Raymond Chandler.

Raymond Chandler (1888-1959) foi, ao lado de Dashiell Hammett, o mais expressivo dos escritores da geração pulp-fiction. Os personagens de seus contos e romances viviam em prostíbulos, bares, casas de jogos, apartamentos pequenos e bagunçados nas ruas e becos de Los Angeles. Os detetives fumavam e bebiam às vias de fato (o próprio Chandler era alcoólatra), entravam em todo tipo de enrascada por uma bela mulher e cobravam entre 5 e 10 dólares de honorários para resolver os crimes.

Philip Marlowe, o detetive mais famoso de Chandler, era pouco mais nobre, fez curso superior, gostava de bebida, de mulheres e de trabalhar sozinho. Era um romântico e, às vezes, perdoava a vítima por puro sentimentalismo. Uma mulher com quem passara a noite perguntou-lhe certa vez:

– Como pode um homem tão duro ser assim tão delicado? – Marlowe respondeu.

– Se eu não fosse duro, não estaria vivo. Se eu não fosse delicado, não merecia estar vivo.

Marlowe protagonizou sete romances de Raymond Chandler. O detetive soturno e dúbio gerou pelo menos um clássico no cinema, À Beira do Abismo (1946), de Howard Hawks, interpretação primorosa de Humphrey Bogart. Era o melhor do gênero noir que influencia escritores e diretores de cinema até hoje. Exemplos: Acossado (1959), Chinatown (1974), Corpos Ardentes (1981), Blade Runner – O Caçador de Andróides(1982), Pulp Fiction (1994). Em cada um desses filmes, os personagens resvalam entre o crime e a lei, a violência e a compaixão, a ambição e a falta de perspectiva no dia-a-dia. Humanos, como todos nós.

Primeiro amor, último sacramento e Entre lençóis

Primeiro amor, último sacramento e Entre lençóis é coletânea de contos, edição conjunta dos dois primeiros livros do autor inglês Ian McEwan. Os contos alternam narrativas eróticas, incluindo histórias de incesto e pedofilia, com mergulhos na insanidade humana. Perversões sexuais dominam grande parte do livro.

“O’Byrne foi sendo imperceptivelmente iniciado dos desejos de Lucy. Não era simplesmente que ela quisesse ficar agachada em cima dele. Ela não queria que ele se mexesse. ‘Se você se mexer de novo’, avisou-lhe certa vez, ‘está perdido’. Por simples hábito, O’Byrne fodeu para cima, mais profundamente, e rápido como a língua de uma serpente ela o golpeou várias vezes no rosto com a mão espalmada. No mesmo instante gozou, deitando-se a seguir atravessada na cama, meio soluçando, meio rindo. O’Byrne, com metade do rosto inchado e vermelho, foi embora emburrado. ‘Você é uma pervertida de merda’, gritara ele da porta.”

Narrativas que não se completam, marcas dos contistas contemporâneos que exploram o universo humano de forma seca, sem aprofundamento nos personagens. São as situações que direcionam as histórias, as personagens transitam por elas com frieza, seus atos parecem soluções naturais. No conto Borboletas, McEwan usa da primeira pessoa para narrar um caso de pedofilia que acontece quase como puro acaso.

“- Menina boba – disse eu -, não tem borboletas. – Em seguida levantei-a delicadamente, tão delicadamente quanto possível, para não acordá-la, e fi-la deslizar suavemente para dentro do canal.”

“Ela se inclina de volta para dentro do barco. Sua boca está rindo, porém seus olhos parecem meio secos e apavorados. Ela cai de joelhos, segurando a barriga devido à dor das risadas, e derruba Alice junto com ela. E o barco vira. Vira porque Jenny cai contra o lado, porque Jenny é grande e meu barco pequeno. Vira rápido, como o clique do obturador de minha câmera, e de repente estou no fundo verde do rio tocando a lama fria e macia com as costas da mão e sentindo os juncos no rosto. Posso escutar gargalhadas como pedaços de pedra a afundar junto a meu ouvido. Mas quando dou um impulso para cima e subo à superfície, não sinto ninguém perto de mim.”

Ian McEwan se consagraria com o premiado Reparação (adaptado para o cinema com relativo sucesso em 2007), também uma história de como olhar os desejos: alguns com perversão, outros com naturalidade. Em Primeiro amor, último sacramento & Entre lençóis, os narradores adotam a naturalidade, o olhar complacente sobre a natureza humana, sem preconceitos ou julgamentos.

Histórias do mar

O fascínio que tenho pelo mar é contemplativo. O sentimento aventureiro de desbravar ondas ficou na adolescência, felizmente. Gosto de me sentar de frente e ficar olhando incompreensível para a beleza. Não passo disso, mas deixo-me embalar pelas histórias de apaixonados que foram além. Basta citar alguns de meus livros favoritos: Moby Dick, de Herman Melville, Lord Jim e Nostromo, de Joseph Conrad, As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, Robinson Crusoé, de Daniel Defoe.

Acabo de ler Histórias do mar – Coletânea de Novas Histórias do National Maritime Museum com esta sensação de voltar às aventuras do mar. O livro reúne contos de autores contemporâneos como Sam Llewellyn, Chris Cleave e Tessa Radley. Histórias que se mesclam entre a aventura dos que enfrentaram oceanos e o cotidiano daqueles que se criaram em frente ao mar. Em ambos os estilos, o fascínio permanece. Às vezes de forma terna, como no conto Devonia.

Não sei como começou isso. Estou com os meus braços em volta dela. E os braços dela em volta de mim. O sol está se pondo no Atlântico e aqui, tão perto da África, está muito quente. (…) Agora eu posso esquecer tudo, porque esta menina, esta menina linda, quis ficar comigo, bem no momento em que nosso navio está para sair do Oceano Atlântico e entrar no Mediterrâneo.”

Outras vezes, de forma assustadora, como no conto Batisferas.

“Quando a porta se abriu mais um pouco, captamos um miasma que ninguém deveria jamais cheirar: o eflúvio de algo inteiramente não humano, abominável, proveniente de um mundo de mucos sugados, absolutamente sem luz, numa umidade asfixiante, abrigo de bocas sôfregas para as quais o corpo humano era um petisco, nada além disso. Negrume encharcado, umidade dos infernos. O metal enferrujado rangeu, e a porta cedeu mais um pouco. O ar fétido escapuliu num silvo e percorreu a multidão; houve quem vomitou. Todos, ao mesmo tempo, deram um passo para trás; alguns saíram correndo. Senti o terror me invadindo. Eu não queria ver o que estava dentro da caixa. O terror subiu rastejando por minha pele e me envolveu, grudento como teia de aranha.”

O fascínio pelo mar, representado em tantas belas histórias dos escritores clássicos aos contemporâneos, está justamente nesta incompreensão. O mar terno das águas azuis é também capaz de provocar o terror, o mais puro terror.

Duas narrativas fantásticas

Duas narrativas fantásticas, de Dostoiévski, reúne duas novelas do autor: A dócil e O sonho de um homem ridículo, publicadas em 1876 e 1877, respectivamente, no Diário de um escritor, revista redigida e editada pelo próprio autor. Como em outras narrativas de Dostoiévski, a morte é o tema central. Melhor dizendo, o suicídio.

Em A dócil, um homem de meia-idade está diante do caixão de sua esposa adolescente.

“…Pois enquanto ela ainda está aqui – tudo bem: me aproximo e olho a cada instante, só que amanhã vão levar embora e – como é que eu vou ficar sozinho? Ela agora está na sala sobre a mesa, juntaram duas mesas de jogo, e o caixão vai ser amanhã, branco, um gloss de Naples branco, e, aliás, nem se trata disso…”

A narrativa segue do momento em que se conheceram até a morte da esposa. O objetivo do narrador é expor ao leitor sua culpa diante do suicídio da jovem:

“Senhores, estou longe de ser um literato, e os senhores podem ver isso, mas não importa, vou contar assim como eu mesmo entendo. É aí que está todo o meu horror, eu entendo tudo!”

A narrativa de um homem ridículo segue o mesmo princípio. O narrador afirma logo no primeiro parágrafo o perfeito entendimento de sua situação:

“Eu sou um homem ridículo. Agora eles me chamam de louco. Isso seria uma promoção, se eu não continuasse sendo para eles tão ridículo quanto antes. Mas agora já nem me zango, agora todos eles são queridos para mim, e até quando riem de mim – aí é que são ainda mais queridos. Eu também riria junto – não de mim mesmo, mas por amá-los, se ao olhar para eles não ficasse tão triste. Triste porque eles não conhecem a verdade, e eu conheço a verdade. Ah, como é duro conhecer sozinho a verdade! Mas isso eles não vão entender. Não, não vão entender.”

A narrativa conta os passos do homem em uma noite.

“Porque essa estrelinha me trouxe uma idéia: eu tinha decidido me matar naquela noite. Fazia dois meses que isso já estava firmemente decidido, e, apesar de ser pobre, comprei um belo revólver e carreguei-o naquele mesmo dia.”

São duas narrativas escritas próximas da morte de Dostoiévski, em 1881. Refletem uma fase do autor na qual ele estava usando em sua literatura influências jornalísticas, buscando relatos do cotidiano – A dócil é inspirada em suicídios ocorridos em São Petersburgo. Talvez buscasse através de suas personagens o entendimento para um ato tão extremo. Talvez buscasse ele mesmo a verdade.

“O principal é – ame aos outros como a si mesmo, eis o principal, só isso, não é preciso nem mais nem menos: imediatamente você vai descobrir o modo de se acertar. E no entanto isso é só – uma velha verdade, repetida e lida um bilhão de vezes, e mesmo assim ela não pegou! ‘A consciência da vida é superior à vida, o conhecimento das leis da felicidade – é superior à felicidade” – é contra isso que é preciso lutar! E é o que vou fazer. Basta que todos queiram, e tudo se acerta agora mesmo.”

A revolução das mídias sociais

A criação publicitária passou por uma fase de transição no início dos anos 90. Uso a palavra transição pois acho mais adequada. Nas agências de publicidade, os computadores tomaram o lugar das pranchetas e das máquinas de escrever. Diretor de arte e redator passam a conviver com essa pressão inerente ao desenvolvimento tecnológico que exige mais e mais conhecimento destas áreas.

Começa, neste período, o processo que resulta na chamada revolução das mídias sociais. Da informatização à internet é um pulo, determinando o crescimento vertiginoso de novas mídias, abrindo variadas possibilidades para a criação. Revolução e novo, dois termos que parecem perseguir os profissionais de publicidade dia-a-dia.

A revolução das mídias sociais, de André Telles, coloca em tópicos as principais características e possibilidades que surgiram/surgem mascaradas sobre o termo redes sociais. O próprio autor avisa:

“A ideia de rede social começou a ser usada há cerca de um século para designar um conjunto complexo de relações entre membros de um sistema social a diferentes dimensões. A partir do século XXI, surgiram as redes sociais na internet, e, do ponto de vista sociológico, permanecem os mesmos conceitos. A revolução das mídias sociais aconteceu sem se derramar uma gota de sangue, diferentemente da revolução francesa.”

A ideia, portanto, não é nova, surpreendente seria o impacto que isso causa em profissões como publicidade e marketing. O autor enumera por tópicos algumas das principais mídias sociais, com dicas de seu melhor uso e alguns cases. Twitter, Facebook, Linkedin, MySpace, Orkut, estes termos que o internauta conhece bem pois transita diariamente aqui e ali, buscando este relacionamento social. Mas no mundo dos negócios, onde sofrem publicitários e profissionais de marketing, ainda são universos em formação, se você pensar nas possibilidades criativas de comunicação.

O livro funciona como uma espécie de manual e seu mérito está justamente em enumerar dicas e possibilidades, apontar alguns caminhos, exemplificar com estratégias de sucesso. A partir daí, se abrem as possibilidades e volto à abertura deste texto. Os termos revolução e novo, a princípio, assustam profissionais de criação publicitária. Com o tempo, o talento das ideias passa a ser aplicado para estes direcionamentos. Sobressaem, então, os profissionais talentosos, aqueles que fazem esta transição sem grandes traumas e, de uma forma ou de outra, são os grandes mentores da revolução. É o que acontece hoje com as mídias sociais: começam a aparecer as grandes ideias, os cases de sucesso, os profissionais que entendem verdadeiramente que o termo revolução está diretamente relacionado a ideias.

Manuais, livros, técnicas aplicadas às redes sociais são apenas ferramentas. O verdadeiro trabalho do profissional de criação continua tão antigo quanto a própria profissão de publicitário: a busca incessante de boas ideias.

Verdades e mentiras no jornalismo

Sherlock Holmes está investigando o caso do assaltante que invade residências apenas para roubar e depois quebrar bustos de Napoleão Bonaparte. Mr. Harker, jornalista, foi vítima de um dos roubos e tenta escrever sobre o acontecimento. Ele diz ao famoso detetive:

“– É preciso tentar fazer a reportagem de tudo isso, embora, sem dúvida alguma, os jornais desta tarde estejam impressos, contando o fato e carregando nos detalhes. Recordam-se quando as tribunas das corridas tombaram em Doncaster? Era eu o único repórter que estava lá, e o meu jornal foi o único também que não deu uma notícia a respeito, porque experimentei uma tal emoção que me tornei incapaz de escrever. Desta vez serei o último a dar os pormenores sobre um assassinato cometido à minha porta.”

Mais tarde, Sherlock Holmes pede a um policial que dê um recado ao jornalista.

“– Se regressar a Pit Street poderá rever Mr. Horace Harker. Diga-lhe de minha parte que estou certo de que o autor do crime é um louco dominado por um grande ódio a Napoleão. Isso lhe será muito útil para o seu artigo.”

“Lestrade fitou-o bem nos olhos:”

“– O senhor não está falando sério – disse ele.”

“Holmes sorriu:”

“– Talvez. Mas estou seguro de que essa informação será interessante para Mr. Harker e para os assinantes dos jornais.”

No outro dia, Holmes lê a notícia no jornal.

“– Vai tudo bem, Watson – disse ele – ouça isto: ‘Estamos contentes em transmitir aos nossos leitores que as mais autorizadas opiniões são unânimes em estabelecer a solução deste caso. Mr. Lestrade, um dos detetives mais experimentados de Scotland Yard e também Mr. Sherlock Holmes, o conhecido técnico, acreditam que os incidentes que tiveram um epílogo tão trágico são a obra de um louco e não de um criminoso autêntico. Nenhuma outra explicação pode ser dada a fatos semelhantes.’”

“– A Imprensa, veja você Watson, é um instrumento eficiente quando a gente sabe servir-se dela.”

Esse trecho, do conto Os seis bustos de Napoleão, de Conan Doyle, aborda algumas questões no processo jornalístico: a dificuldade de escrever sobre fatos que nos emocionam demais; a prática de publicar notícias sem checar; jornais servindo a interesses variados, principalmente políticos.

Sobre mentiras e verdades no jornalismo, há um conto exemplar de Rudyard Kipling, Uma Questão de Fato. Três jornalistas estão a bordo de um navio. Os jornalistas presenciam uma cena de terror no mar. Dois monstros marinhos, semelhantes a grandes serpentes, lutam pela vida. Os tripulantes do navio assistem a tudo incrédulos, esperando pela morte, mas se salvam ilesos.

“– Precisamos reunir nossas notas – foi a primeira observação coerente de Keller – Somos três jornalistas treinados, temos em mão o maior “furo” de reportagem que jamais se viu. Vamos começar consciensiosamente.”

Os jornalistas começam a trabalhar e escrevem as matérias, cada um a sua maneira, tentando contar a história da serpente marinha. Depois de prontas, discutem o que fazer com as matérias.

“– Você parece não dar valor ao nosso “furo”. É piramidal: a morte da serpente no mar! Homem, é a coisa mais sensacional que já se publicou.”

“– O curioso é pensar que nunca aparecerá em jornal algum, não acha? – disse eu.”

Desembarcam do navio e continuam a viagem por terra, adiando o envio das reportagens.

“Por sinal, Zuyland, naquela madrugada, já rasgara e atirara ao mar o próprio artigo. As razões para esse gesto eram idênticas às minhas. (…)”

“No trem, Keller começou a rever o artigo. (…)”

“– Você não está reduzindo demais? – perguntei, solícito. – Lembre-se que tudo acontece e se imprime nos Estados Unidos, desde uma simples anedota sobre botões de calça até uma história fantástica sobre águias de duas cabeças.”

“– Isto é que atrapalha – murmurou Keller – Escrevemos tantas vezes tolices, que quando se trata da cristalina verdade….”

Dos três jornalistas, apenas Keller, o americano, tenta publicar a história, sem sucesso, em um jornal inglês. No final, o narrador do conto conversa com Keller sobre como publicar a reportagem.

“– Não faça conta, Keller. (…) Se você fosse setecentos anos mais velho, teria feito o que eu vou fazer.”

“– Que você vai fazer?”

“– Fazer como se se tratasse de uma mentira.”

“– Uma fantasia? – disse com um desprezo ardente pela fantasia, filha ilegítima da profissão.”

“– Pode chamar assim se quiser. Eu chamo de mentira.”

“E mentira ficou sendo. Porque a Verdade é uma dama nua. E se, por acaso, for arrancada do fundo do oceano, a um gentleman só cabe dar-lhe uma saia ou virar o rosto para a parede e jurar que não viu nada.”