Conto de inverno

O filme tem um prólogo que remete a romances de férias de verão. Charlotte e Charles estão em uma praia deserta onde podem tomar sol e nadar nus. À noite, praticam sexo de forma quase selvagem (uma dos raros filmes de Rohmer que mostra cenas de sexo beirando o explícito). No final das férias, os amantes se despedem na estação de trem e Charlotte passa seu endereço para Charles.

Corta para Paris, cinco anos depois. É inverno, próximo ao natal. Charlotte trabalha como cabeleireira, é amante do dono do salão e tem outro namorado, Loic. Seu amor de verão ficou no passado (inadvertidamente ela passou o endereço errado e eles nunca mais se encontraram). Mas das tórridas férias de verão, nasceu Elise, agora com cinco anos. 

Conto de inverno é o mais aclamado título da série Contos das quatro estações. Após o prólogo, a narrativa se desenvolve em poucos dias, centrada nas indecisões de Charllote quanto aos seus dois namorados, pois ela espera dia após dia a volta quase milagrosa de Charles, seu grande amor. 

“Com este engenhoso, porém sombrio, estudo de uma fé desesperada e de um amor perdido, lembrando Minha noite com ela, e a quase irritantemente indecisa e egocêntrica heroína que lembra O raio verde, este é o território arquetípico de Rohmer, chegando por um reconhecimento perfeitamente calculado ao teatro de Shakespeare e, consequentemente, a um final miraculoso porém extremamente satisfatório. Como sempre, também, os desempenhos naturalistas são inteiramente plausíveis, o uso de locais evocativos – Paris e Borgonha – e as caracterizações (incluindo um bibliotecário intelectual e o chefe mais pragmático da garota como seus admiradores) precisamente representativos das escolhas com que a protagonista se defronta.”

O final da narrativa apresenta talvez o ápice do principal elemento narrativo que marca tantos filmes de Éric Rohmer: o acaso. O encontro entre Charlotte e Charles dentro de um ônibus em Paris, o olhar terno com que a menina (que já o conhece por fotos) reconhece o pai. Desses momentos encantadores do cinema. 

Conto de inverno (Conte D’Hiver, França, 1992), de Éric Rohmer. Com Charlotte Véry (Félicie), Frédéric van den Driessche (Charles), Michel Voletti (Maxence), Hervé Furic (Loic), Chistiane Desbois (Mãe de Félicie), Ava Loraschi (Elise). 

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

Conto de verão

Gaspard está de férias no litoral. Ele espera a chegada de sua namorada Léna e conhece Margot, com quem começa um relacionamento que oscila entre a amizade sincera e a atração. Entra em cena Solène, jovem com quem Gaspard tem um rápido namoro de verão. O triângulo entre Gaspard, Margot e Solène se complica quando Lèna finalmente chega. 

A narrativa é movida, basicamente, pelos diálogos entre Gaspard e Margot, enquanto se movem incessantemente pelas belas paisagens da cidade litorânea. Os flertes e beijos entre Gaspard e as três jovens são entrecortados com reflexões sobre os relacionamentos, sobre as surpresas agradáveis, conflitos e frustrações inerentes entre pessoas que passam a se conhecer. A música que Gaspard compõe (ele é músico e ensaia composições leves ao violão), cantada pela bela voz de Solène, embala esses romances indecisos e fortuitos de verão. 

Conto de verão (Conte D’Été, França, 1996), de Éric Rohmer. Com Melvil Poupaud (Gaspard), Amanda Langlet (Margot), Gwenaelle Simon (Solène), Aurelia Nolin (Léna). 

Conto da primavera

É o primeiro filme da série Contos das Quatro Estações de Eric Rohmer. Nada mais delicado do que começar com a primavera. Jeanne, uma professora de filosofia, conhece Natacha, estudante de música, em uma festa. As duas se sentem deslocadas ali e vão para o apartamento de Natacha, Jeanne vive temporariamente sem pouso, pois seu apartamento está emprestado para uma prima. As duas passam alguns dias juntas, quando o pai da jovem música chega, um possível relacionamento amoroso com Jeanne se insinua. 

A metáfora da primavera é visível nas situações que se colocam: florescimento da amizade, do romance, tudo de forma sutil e, às vezes, temporária. As cenas na casa de campo ao ar bucólico da estação embalam os personagens em seus diálogos, flertes, beijos… O olhar de Éric Rohmer é sempre delicado e apaixonado por seus jovens personagens. 

Conto da primavera (Conte de printemps, França, 1990), de Éric Rohmer. Com Anne Teyssèdre (Jeanne), Hugues Quester (Igor), Florence Darel (Natacha), Eloise Bennett (Ève). 

Artesão pickpocket

No final do filme, uma frase revela: “Todo este filme foi interpretado por atores não profissionais.” A influência neorrealista é expressa não só nesta declaração, mas em toda a narrativa. Xiao Wu ganha a vida batendo carteiras nas ruas da cidade. Se considera quase um artista em sua profissão e reluta em abandonar a atividade, a exemplo de alguns de seus antigos companheiros. Xiao fica sabendo que um destes amigos, com quem compartilhara grandes momentos, está de casamento marcado. O batedor de carteira não é convidado para o casamento e passa por um grande conflito. Ele começa a frequentar um bordel e se apaixona por uma prostituta, mas tem dificuldades em se entregar ao relacionamento. 

A câmera segue o protagonista pelas ruas da cidade como uma testemunha das ações e das pequenas transformações dos personagens. Em determinado momento, Xiao, depois de inúmeras recusas, decide cantar com a prostituta em um jogo de karaokê. Entrega-se à canção com emoção reveladora. São as nuances deste cinema realista e ao mesmo tempo intimista que marca as obras de Jia Zhangke. A conjunção destas duas características é de uma tristeza perturbadora na sequência final, quando Xiao é humilhado diante de dezenas de pessoas na rua.  

Artesão pickpocket (I Xiao Wu, China, 1997), de Jia Zhangke. Com Wang Hong Wei, Hao Hong Jian, Zuo Bai Tao, Ma Jin Rei. 

Felizes juntos

Os jovens Ho Po-Wing e Lai Yiu-Fai se mudam para Buenos Aires onde vivem um intenso relacionamento, marcado pela tensão dos amantes que se dividem entre a amorosidade e a agressividade. A estética do gênero road-movie se apresenta fascinante em uma viagem frustrada que os dois tentam fazer para conhecer as Cataratas do Iguassú e nas próprias andanças por Buenos Aires. 

Wong Kar Wai conquistou a Palma de Ouro de direção em Cannes, referendada pela sua parceria com o diretor de fotografia Christopher Doyle. A estética fascinante das cenas externas – as estradas, as cataratas, Ushuaia, as ruas da cidade – contrastam com o sentimento opressivo que provocam as cenas gravadas no pequeno quarto de pensão, onde os namorados vivem momentos de idílio e tensão. Outro ponto de destaque são as primorosas interpretações de Leslie Cheung e Tony Leung que se entregam aos papéis no limiar entre a atuação e a realidade. 

Felizes juntos (Chun gwong cha sit I, China, 1997), de Wong Kar Wai. Com Leslie Cheung (Ho Po-Wing), Tony Leung (Lai Yiu-Fai), Chang Chen (Chang). 

Anjos caídos

A narrativa apresenta duas histórias paralelas, dois personagens que transitam pelas noites de Hong Kong, praticando ações que beiram o surrealismo. Um assassino de aluguel entra em prostíbulos, bares e casas de jogo atirando com duas armas. Sua profissão é matar e não se importa com isso, simplesmente mata e reza para ter atingido os alvos certos. Um jovem mudo invade estabelecimentos comerciais fingindo ser funcionário, extorquindo dinheiro dos clientes com atitudes extravagantes, como entupir de sorvete uma família. 

O quinto filme de Wong Kar Wai oscila entre o humor, a violência, sentimentos de euforia e depressão, essas coisas que compõem as ruas e as noites das metrópoles. A câmera acompanha os personagens distópicos freneticamente, imagens fragmentadas, cortes abruptos, estética extravagante, é o painel da noite de Hong Kong bem ao estilo de Wong Kar Wai. 

Anjos caídos (Do lok tin si I, China, 1995), de Wong Kar Wai. Com Leon Lai (Wong Chi-Ming), Michelle Reis (The Killers Agent), Takeshi Kaneshiro (He Zhiwu), Charlie Yeung (Charlie). 

Amores expressos

Wong Kar Wai filmou essa fascinante incursão pelos encontros casuais das ruas de uma cidade em apenas 23 dias. São duas histórias que se confundem, se misturam, se integram, essas coisas de destinos. 

O policial 223 tenta esquecer sua antiga namorada, comendo sem parar enlatados que estão perto de perder a validade. Em um bar, conhece uma bela e misteriosa criminosa, cuja arma atira como nos bons filmes de Godard. O policial 663 tem um tórrido caso com uma aeromoça, que o abandona. Ele faz a ronda da cidade perto de uma lanchonete, onde trabalha uma despretensiosa e irreverente garçonete. Fascinada pelo policial, a garçonete passa a frequentar a casa do policial enquanto ele está no trabalho, promovendo mudanças sutis na decoração, deixando sua marca. 

Amores expressos foi responsável pela revelação internacional do icônico diretor Wong Kar Wai e, por extensão, abriu os olhos do ocidente para o cinema contemporâneo asiático. O contraponto de cenas aceleradas e outras em câmera lenta estão presentes, assim como a exuberância visual, pontuada sempre por uma trilha sonora que, às vezes, apenas marca a trama, outras, toma conta do espaço cênico – destaque para California Dreams

Não espere narrativa coerente, bem costurada em termos de roteiro. As duas histórias são fragmentos de encontros, como esses encontros entre jovens que tentam se reconciliar com seus amores. 

Amores expressos (Chung hing sam I am I, China, 1994), de Wong Kar Wai. Com  Brigitte Lin, Tony Chiu Wai Leung, Faye Wong, Takeshi Kaneshiro, Valerie Chow, Jinquan Chen, Lee-Na Kwan, Zhiming Huang, Liang Zhen, Songshen Zuo

Cronos

Guilhermo Del Toro é essencialmente um cineasta das imagens. Trata seus filmes com um apuro visual e técnico de encher os olhos. Em Cronos, seu primeiro filme, essa marca já está lá, como a anunciar um dos grandes estetas do cinema, consagrado posteriormente em obras como HellboyA colina escarlateA forma da água e, acima de tudo, O labirinto do fauno

Cronos abre com a história de um alquimista espanhol que, fugindo da inquisição, vai parar em Vera Cruz, México. Sua vida é dedicada a pesquisar a imortalidade, isso resulta em um invento chamado Cronos, dispositivo mecânico similar a um inseto. Corta para os anos 90, um estranho é encontrado morto após o desabamento de um prédio. É o alquimista. Corta para uma loja de antiguidades onde estão Jesus Grill e sua neta, a silenciosa Aurora.

A história em si não apresenta muitas surpresas. É a releitura de Del Toro do mito do vampiro. Jesus Grill encontra e experimenta o dispositivo. Ele passa por mutações físicas e psicológicas, seu corpo cada vez mais necessitado do Cronos, enquanto sua mente e seus sentimentos relutam. A ação da trama acontece com a entrada de Angel, espécie de capanga do velho e rico Dieter de la Guarda, moribundo que passa a vida procurando pelo dispositivo do alquimista.

Os conflitos psicológicos do protagonista remetem a dois outros grandes filmes sobre imortalidade deste período: Highlander e Sede de viver

A direção de fotografia de Guillermo Navarro imprime à trama um misto de fascínio, tristeza e repulsa, afinal, cenas escatológicas também marcam o cinema de Del Toro. Atenção para as belas sequências da pulsante engrenagem dentro do inseto dourado e para a sequência do banheiro durante a festa de virada de ano. Poucas vezes o cinema de vampiro foi tão impactante.

Cronos (México, 1993), de Guillermo Del Toro. Com Federico Luppi (Jesus Grill), Claudio Brook (Dieter de la Guarda), Ron Pearlman (Angel), Aurora (Tamra Shanath). 

O castelo de minha mãe

Certos filmes ficam na memória, na alma, no coração. Impossível não guardar para sempre a sequência final de O castelo de minha mãe, quando o adulto Marcel, agora diretor e produtor de cinema, se vê frente a frente com as memórias de sua infância, com a imagem de sua mãe diante do castelo que tanto temia e adorava.

O filme é continuação de A glória de meu pai, agora dedicado à mãe de Marcel Pagnol. A história gira, novamente, em torno das viagens que a família faz para a casa nas montanhas. Os pais decidem passar os finais de semana na casa e, para encurtar o caminho, recebem a cópia de uma chave que dá acesso a uma trilha pelo canal que margeia os fundos de mansões.

Marcel conhece seu primeiro amor, tem sua primeira decepção, cresce e vê as pessoas queridas partirem. É um filme sobre o tempo e as memórias que dele ficam. Sobre pais, irmãos, sobre perdas. Enfim, sobre todos nós.

O castelo de minha mãe (Le château de ma mère, França, 1990), de Yves Robert. Com Philippe Caubère (Joseph Pagnol), Nathalie Roussel (Augustine), Didier Pain (Tio Jules) Thérèse Liotard (Tia Rose) Julien Ciamaca (Marcel).

A glória do meu pai

As memórias de infância do escritor Marcel Pagnol renderam dois filmes  adoráveis: A glória de meu pai e O castelo de minha mãe. O primeiro é dedicado ao pai do escritor, um professor de escola primária, ateu convicto, que vive dedicado à sala de aula, aos filhos, à mulher.

Durante as férias de verão, a família aluga uma casa nas montanhas. Nestes dias ensolarados, o pequeno Marcel vai se descobrir aos poucos. Trava amizade com um menino, morador do vilarejo e, juntos, desbravam a natureza. Aprende também a olhar o pai em busca de sua pequena glória. É o momento sublime do filme: Marcel, do alto da montanha, os braços estendidos, segurando o prêmio que o pai conquistara.

A glória de meu pai é um filme de afetos:  pais e filhos em pequenos momentos, hora rígidos, hora carinhosos, hora feito de olhares amorosos, de gestos enternecedores como Marcel amarrando os sapatos de sua mãe, em uma pausa da trilha cansativa. Um filme que remete à infância de famílias felizes.

A glória de meu pai (La gloire de mon père, França, 1990), de Yves Robert. Com Philippe Caubère (Joseph Pagnol), Nathalie Roussel (Augustine), Didier Pain (Tio Jules) Thérèse Liotard (Tia Rose) Julien Ciamaca (Marcel)