Quando criança, nunca dei tiro de chumbinho em gatos. O máximo que fiz, por curiosidade, foi segurar um felino de cabeça para baixo, a três palmos do chão, para ver se caía em pé. Sempre respeitei os bichanos. Adolescente, conheci o Rio de Janeiro. Nunca vou me esquecer do Pão de Açúcar, das argentinas na praia, do gato.
Minha tia morava em Ramos, uma hora de ônibus até as praias de Copacabana e Ipanema. De dia, praia, à noite, por prudência e idade, conversa na porta da rua. Meus primos tinham hábitos suburbanos. Frequentavam a quadra do colégio no sábado, ouviam jogo do Flamengo no domingo á tarde, jogavam baralho até tarde da noite. E tinham um gato. Gato errante de muros e lamentos. Desaparecia toda noite.
Casa pequena, dois quartos, eu dormia no chão da sala. Era casa geminada, mofo nas paredes, tacos soltos, alguns podres. Naquela noite, fui dormir cedo, cansado da praia. Estendi o colchão no canto, encostado na parede. Abri os olhos na madrugada. A cerca de 20 centímetros do meu rosto, o gato. Sentado no chão da sala, a elegância dos felinos, boca fechada, bigodes equilibrando o rosto numa estética perfeita, pelos limpos e brilhantes, olhos parados nos meus. Fechei os olhos, abri. O gato continuava na mesma posição, como escultura de olhos vivos. Virei para a parede e demorei a adormecer, sabia que ele ainda estava lá, observando. Durante todas as outras noites dormi virado para a parede, rosto colado no mofo.
Depois desta noite, não sei se por acaso ou cisma, os gatos sempre procuram meu olhar. À noite, dirigindo, quando o farol bate num felino, naquele breve instante em que ele pára, calcula o risco do atropelamento e depois desaparece, meu olhar se encontra com o dele. Não, esta história não vai chegar a animais pretos na encruzilhada ou a Edgar Allan Poe. Nada de bruxos, nada de reencarnações. É história de amantes como outra qualquer. A minha namorada tinha um gato.
Conheci Mércia em um bar de jornalistas. Próximo à redação do jornal, o bar ficava aberto pela madrugada, esperando os notívagos. Os jornalista chegavam um a um, alguns eufóricos pelas belas reportagens, outros frustrados pelos cortes do editor, outros sonhando mais alto do que meras resenhas culturais, como Mércia. Ela trabalhava no caderno 2, passava a noite conversando sobre as matérias que fizera e as que não fizera. Quando conversava sobre contos policiais, seus olhos, bem, num desses olhares… terminamos a noite em seu apartamento.
Eu o enxerguei assim que ela abriu a porta: Philip, o gato. Enrodilhado no sofá da sala, levantou a cabeça, seus olhos fixos em mim. Passou a ser rotina. Duas ou três vezes por semana, do bar direto para o apartamento. Dormíamos até tarde, dez, onze da manhã, mas era durante a madrugada que temores me assaltavam. O gato, em algum canto da casa, eu sabia, espreitava. Meu olhar, vez por outra, cruzava com o dele na porta do quarto.
Naquela noite, quando entramos, eu não vi Philip. Estava cansado, fui direto para o quarto. Adormeci. Acordei perto das cinco da manhã, uma sensação de que estava sendo observado. Pressenti um vulto se esgueirando na porta do quarto. Olhei em volta, a luz fraca do abajur projetou sombra na parede, felinamente rápida. Pulei da cama, Mércia se assustou. Suor começou a escorrer pelo meu rosto, ela perguntou se eu estava passando mal. “Preciso de um banho.”
Virei o rosto para o chuveiro, deixei a água quente bater em meu rosto por longo tempo, aliviando meus pensamentos. Quando entrei no quarto, Mércia estava sentada na beira da cama, minha camisa nas mãos, olhar desolado. “Você não vai acreditar.” Ela abriu os braços e estendeu a camisa de malha. Três longos cortes paralelos, começando perto da gola, desciam até o fim da camisa, terminando pouco antes da barra. Perfeitos, descendo em diagonal, como três garras rasgando meu peito.
Mércia saiu gritando por Philip, fiquei com a camisa nas mãos, sentindo os cortes. Peguei uma camisa qualquer no guarda-roupa, vesti as roupas apressado sem dizer nada. Na porta, beijei Mércia pouco menos demorado, os olhos tentando encontrar o gato atrás da amante. Desci as escadas, abri o portão da entrada, olhei para cima. Mércia estava na janela, como sempre. Mas eu só enxergava o olhar de Philip, em algum canto da casa.