Ângela levou o copo de vinho aos lábios sem tirar os olhos dos meus. Três horas depois, o corpo dela repousava no meu. Naquela tarde, uma chuva serena esfriara de vez o tempo em Maringá. A neblina encobrira a serra, da janela da casa se viam nuvens baixas passando como fumaça entre as araucárias da serra. Na pousada em frente, um ou outro casal aparecia na varanda por alguns minutos, como a maldizer o tempo que acaba com finais de semana românticos, casos eventuais, passeios aventureiros ou coisa parecida que a paisagem inspira. Aventuras na serra e amores selvagens não combinam com este frio impiedoso.
Há mais de dez minutos eu estava na janela, pensando no telefonema de poucos minutos atrás.
– Meu amor, não posso subir hoje. Dois médicos adoeceram ao mesmo tempo e me escalaram de última hora para o plantão desta noite. Você sabe… início de feriado, estes idiotas morrendo sem parar nas estradas…
Há cerca de dois meses, Cláudia e eu alugamos uma casa na serra para finais de semana. Todos os amigos alertaram da praticidade de ficar em pousadas, ao invés de pagar aluguel, além dos consertos que todas as casas necessitam.
– Vamos ter trabalho, tem certeza que a gente tem disposição para pegar a Dutra todo final de semana? – Cláudia respondeu que seria como uma aventura, um desafio. Só não teve coragem de completar que talvez fosse a última tentativa para aquele casamento que insistia em sobreviver sem romantismo, o sexo se limitando aos domingos de manhã.
Ela prometera descansar um pouco após o plantão e subir logo depois do almoço.
– Juízo, heim!!! – alerta desnecessário para um homem que não entendia mais o significado de determinados olhares que trocava com uma ou outra mulher.
À tardinha, tomei a decisão sem sentido, com aquela chuva fina, de caminhar pelas ruas da vila. Desisti logo que desci do carro e o vento jogou a garoa fria no meu rosto. Estava em frente a um bar que sempre me atraíra. O proprietário decorara a fachada com discos de vinil, dentro, só tocavam velhos LPs, aquele som chiado tomando conta do ambiente.
Pedi um vinho. O bar estava vazio, com apenas três ou quatro casais mais velhos. Ouvi uma risada alta às minhas costas. Os casais à minha frente olharam em direção à mesa, reprovadores, revelando a imperdoável interrupção do ensimesmar. Despejei um pouco mais de vinho no copo, a vontade incontrolável de me virar e também acusar, dizer do absurdo de naquela noite fria, solitária e sem esperança, alguém rir daquela maneira.
Na segunda risada, ainda mais alta, me voltei em um impulso para a mesa imediatamente atrás da minha, onde três mulheres conversavam. Ângela sentiu de imediato a ferocidade do meu gesto e abaixou os olhos. Por poucos segundos. Passou os dedos pela borda do copo, os lábios se contraíram em um leve sorriso e voltou a levantar os olhos em direção aos meus. Ficamos assim um tempo. Ela se levantou, caminhou até a minha mesa e se sentou à minha frente, sem sequer pedir licença. Um gesto impulsivo, instinto natural de quem sabe que estes olhares não podem se transformar, na manhã seguinte, no arrependimento do que não aconteceu.
Ângela, de rosto anguloso, emoldurado por cabelos castanhos levemente cacheados que caíam até os ombros. Seus olhos amendoados deixavam a sensação de chuva mais evidente, seus dedos finos e longos envolviam o copo de vinho com delicadeza, com a suavidade de alguém que trabalha com carinho nas mãos, talvez uma paisagista, arquiteta, quem sabe artista plástica. Conversamos pouco, Ângela fez a proposta sem rodeios.
Não sei. Hoje, tantos anos depois, envelhecendo ao lado de Cláudia, minhas lembranças daquela noite são as lembranças do olhar. Ângela debruçada em meu peito após o amor, lembrança indelével, como as araucárias embranquecidas pelo inverno rigoroso da serra.