Torre. Um dia brilhante

O filme abre com uma referência a um clássico do gênero terror: O iluminado (1980), de Stanley Kubrick. Visão aérea mostra um carro trafegando por uma bela estrada campestre. No carro estão um casal e Kaja, no banco de trás. 

Eles chegam a uma casa no interior para uma reunião familiar. Mula, a proprietária, é irmã de Kaja e do motorista. A mãe deles sofre de alzheimer e está sob os cuidados de Mula. O centro da trama é a criança Nina, filha de Kaja, mas que foi entregue aos cuidados de Mula seis anos atrás. 

Mistérios do passado rondam a reunião familiar, marcada por situações surpreendentes, como a cura repentina da mãe. A trama trabalha com insinuações ao gênero sobrenatural, que não se concretizam, são muito mais imagens encobertas por mistério, sombras que se dissipam deixando a sensação de paranóia e medo que ronda os segredos da família. O filme de estreia da diretora polonesa Jagoda Szelc é completamente aberto aos caminhos que o passado remete, como na lenta caminhada coletiva no final do filme. 

Torre. Um dia brilhante (Wieża. Jasny Dzień, Polônia, 2017), de Jagoda Szelc. Com Anna Krotoska (Mula), Małgorzata Szczerbowska (Kaja), Anna Zubrzycki (Ada), Dorota Łukasiewicz-Kwietniewska (Anna), Rafał Kwietniewski (Andrzej), Michał Rafal Cieluch (Michał), Laila Hennessy (Nina).

Kanal

Dois aspectos chamam a atenção na trilogia da guerra do diretor polonês Andrzej Wajda, composta pelos filmes Geração (1954), Kanal (1957) e Cinzas e Diamantes (1958).

O primeiro é a certa irresponsabilidade romântica de uma geração de jovens cineastas recém saídos da escola polonesa de cinema. Andrzej Wajda decidiu cortar do roteiro de Kanal uma cena noturna de batalha porque era impossível ver os tiros de festim sendo disparados. A equipe de produção então isolou a área e a cena foi gravada com munição. O que se vê na tela são lampejos, pequenos raios cortando a noite, tiros de verdade.

O segundo aspecto é esse cinema carregado de simbolismo político. Kanal conta a história de um pequeno batalhão do exército polonês, cerca de 40 combatentes, durante o levante de Varsóvia, no final da Segunda Guerra Mundial. Para escapar dos nazistas, os soldados se refugiam nos esgotos da cidade. No início do filme, os personagens passam enfileirados pela câmera e narração em off antecipa que estamos vendo as últimas horas da vida daqueles soldados.

Em outra sequência, no final do filme, Bússola, jovem soldado, está mortalmente ferido e é amparado por Margarida, sua namorada, dentro dos esgotos. Eles se arrastam, a cena é escura. Avistam um clarão de luz. A saída. Margarida sorri, levanta Bússola e o beija: “nós vamos viver”. Corta para imagem de uma grade de ferro, impedindo a fuga para o Rio Vístula. Ao se dar conta da situação, Margarida diz: “não abra os olhos, está muito claro”. Ela segura as grades com as duas mãos, um close mostra seu olhar perdido. Andrzej Wajda comenta a cena.

Os dois heróis no Kanal, Margarida e seu amigo, alcançam as grades de ferro do esgoto onde esperam alcançar a liberdade, mas não podem se beneficiar daquela liberdade porque o esgoto está gradeado. Bússola morre e Margarida permanece com seu olhar perdido na distância . Bem, as audiências na Polônia sabiam o que estava ao longe porque o Rio Vístula estava ali. Em um dos lados estava o levante e do outro lado estava o exército soviético. Aquele sinal, que poderia ser obscuro para qualquer outra pessoa, foi compreendido por todos os poloneses. Os seus amigos estavam do outro lado então porque não podiam atravessar para este lado? É claro que não podíamos mostrar claramente que o Exército Vermelho estava do outro lado do Rio Vístula esperando o fim do levante.”

A verdade não podia ser mostrada porque o filme foi realizado em 1957, com a Polônia já sob o regime comunista soviético. A censura não permitiria a realidade nas telas.

O levante de Varsóvia, em 1944, provocou a morte de cerca de 250.000 poloneses. Os moradores da cidade resolveram combater os ocupantes nazistas porque imaginaram que o exército soviético estava se aproximando para ajudá-los. Uma decisão política determinou que os soldados soviéticos esperassem o fim do levante, próximos à cidade. O crítico de cinema Jerzy Plaszewski  explica o motivo.

“Do outro lado estavam aqueles que poderiam salvar o levante, que podiam avançar e atacar, mas eles estavam esperando que os poloneses sangrassem até a morte de maneira que se tornasse mais fácil impor o governo soviético na Polônia. Sabemos que o levante fracassou, que objetivamente foi uma derrota.”

Wajda completa“No fim temos que levar em consideração que a capital foi destruída, a inteligência foi destruída. Em resumo, isso facilitou que Stálin capturasse a Polônia.”Essa é a guerra. Milhares morreram para satisfazer a fome de poder de políticos e generais genocidas. Andrzej Wajda recorreu ao cinema, a uma poesia triste, para escrever a verdadeira história.

Referência: extras do DVD.

Não amarás

A cena de Magda vendo e se emocionando com sua própria solidão através da luneta de Tomek é das mais poéticas do cinema. Tomek é um jovem de 19 anos que todas as noites espiona Magda, vizinha mais velha e solitária que vive de relacionamentos frugais. Após Tomek se denunciar, uma estranha relação permeia os dois, marcada pela dificuldade de comunicação e impossibilidade física. Quando descobre a paixão de Tomek, Magda provoca o jovem e acaba revelando sua incapacidade de amar. Tomek, por sua vez, sofre silenciosamente, como todo voyeur, tentando, à distância penetrar no âmago de seu objeto de desejo.

“Magda possui uma vida independente, além do que o rapaz pode espionar. Parte do apartamento dela não é visível pela luneta e o som direto não alcança a janela dele (para conhecer a voz dela, por exemplo, é preciso recorrer ao telefone). Em dado momento, Magda chega em casa e começa a chorar. Ela senta-se à mesa da cozinha, de costas para a janela (que é a câmera subjetiva de Tomek), ocultando ao voyer o rosto. Na tentativa de compreender o que não pode ver, Tomek pergunta para a senhora que o hospeda o porquê de as pessoas chorarem. Magda absolutamente não lhe é transparente. A Magda que o espectador constrói é uma personagem criada por Tomek, mas que possui uma vida autônoma, escapando-lhe ao controle. Ele pode apreender-lhe a imagem, mas não lhe é possível conhecer suas motivações mais internas – isso ele só pode deduzir a partir da sua própria experiência, do que viu e do que acredita saber sobre as pessoas, sobre a vida, sobre o mundo. A narrativa estimula também a subjetividade do espectador que procura atualizar tanto os dados que lhe foram narrados quanto seu inventário imagético-cinematográfico e seu repertório cultural.” – Erika Savernini.

Referência: Índices de um cinema de poesia. Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004

Não amarás (Thou shalt not commit adultery, Polônia, 1988), de Krzysztof Kieślowski. Com Olaf Lubaszenko (Tomek), Grażyna Szapołowska (Magda), Stefania Iwinska (senhora que hospeda Tomek).

Não matarás

O filme tem uma das sequências mais impressionantes de morte da história do cinema. Jacek tenta estrangular o taxista, que insiste em não morrer, fazendo com que o assassino seja mais e mais violento. No início da película, o jovem Jacek caminha pelas ruas da cidade. Montagem alternada coloca em cena um taxista que despreza seus clientes e Piotr, um advogado em sua prova final, respondendo questões para a banca formada por outros advogados. O caminho dos três se cruza em uma lanchonete e, na saída, Jacek entra no táxi. Após o assassinato, corte brusco mostra a condenação do jovem, cujo defensor é Piotr.

Não matarás é o capítulo 5 da série Decálogo e, assim como Não amarás, foi adaptado para o cinema. A narrativa apresenta um protesto contra a pena de morte. Mesmo diante do ato cruel, inexplicavelmente gratuito de Jacek, Piotr mantém sua convicção contra a pena capital.

“O discurso que Kieslowski coloca na boca da personagem é o seu próprio julgamento da questão. A história de um assassinato e da punição deste criminoso torna-se um questionamento sobre a sociedade, na forma da pena capital. Dois assassinatos são cometidos, igualmente brutais. Um individual e outro coletivo. Significativamente, as duas mortes são similares. Jacek estrangula o taxista e é enforcado. Também narrativamente essas sequências são tratadas de forma análoga: acompanham-se os preparativos e seus detalhes. Assim como se vê Jacek escolher uma vítima e preparar o ataque, se vê o carrasco preparar cuidadosamente o local de execução. São dois ‘crimes’ premeditados, com o diferencial único de que o crime coletivo cometido contra Jacek é considerado preciso e justo.” – Erika Savernini.

Não matarás (Thou shall not kill, Polônia,1988), de Krzysztof Kieślowski. Com Miroslaw Baka (Jacek), Krzysztof Globisz (Piotr), Jan Tesarz (taxista).

Referência: Índices de um cinema de poesia. Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieślowski. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004

A cicatriz

Quando li Batismo de Sangue, declaração do autor Frei Betto me chamou a atenção. Ele dizia, em matéria sobre o livro, se não me engano, que foi à residência do delegado Fleury e o encontrou tranquilamente brincando com os filhos. Essa imagem de um torturador do regime militar entregue carinhosamente à sua família é também sintomática no cinema.

Em O poderoso chefão, pouco antes de morrer, Don Vito Corleone (Marlon Brando) está com o neto no jardim: correndo, rindo, se divertindo com a criança. Gângster, mafioso, o termo por si só já define a personalidade cruel, vingativa, do homem mandante e executor de assassinatos. Em casa, no entanto, é amoroso pai e avô.

No filme A cicatriz (Blizna, Polônia, 1976), de Krzysztof Kieslowski, importante membro do partido comunista é encarregado de comandar a construção de uma indústria de fertilizantes químicos em área florestal da Polônia, resultando no desmatamento que prejudica milhares de famílias que vivem do sustento da terra. A justificativa do regime comunista polonês para este atentado é a criação de empregos, o desenvolvimento da economia. Nada pode deter o progresso.

O diretor deve seguir essas diretrizes, mesmo tendo que se confrontar com alguns fantasmas do passado, pois ele viveu naquela cidade. Quando a indústria entra em operação, um grande desastre ambiental é provocado e o diretor tenta reverter tudo, mas já é tarde.

A cicatriz termina com a imagem do diretor brincando com o neto dentro de casa, após se demitir do cargo. Lá fora, a fábrica continua a consumir, movendo a roda incessante da sociedade. O diretor é apenas instrumento da engrenagem e cumpriu o seu dever. Imagens ternas como pais brincando com filhos não são capazes de perdoar a imensa culpa de determinados protagonistas da história.

Guerra fria

Zula chega a uma casa no interior da Polônia para participar de concurso de canto. A casa abriga uma espécie de conservatório mantido pelo governo comunista, cuja intenção é montar grupos para difundir a música polonesa tradicional, reforçando os valores patrióticos. O maestro e compositor Wictor é responsável pela seleção e ensaios dos candidatos. 

Guerra fria tem espetacular fotografia em preto e branco, acentuando o tom dramático do país envolto nas questões políticas que negam a liberdade individual. Wictor e Zula se apaixonam e percorrem o país em apresentações musicais. Zula se torna cantora de sucesso, mas Wictor acalenta o sonho de fugir da Polônia e seguir sua carreira em Paris. A bela e melancólica trilha sonora pontua a história marcada pela tentativa de permanência do amor confrontado com as escolhas de Zula e Wictor. A tristeza recorrente da incapacidade de adaptação dos expatriados é outra forte presença na película que concorreu ao Oscar de filme estrangeiro.

Guerra fria (Zimna Wojna, Polônia, 2018), de Pawel Pawlikowski. Com Joanna Kulig (Zula), Tomasz Kot (Wictor). 

A cicatriz

Quando li Batismo de Sangue, declaração do autor Frei Betto me chamou a atenção. Ele dizia, em matéria sobre o livro, se não me engano, que foi à residência do delegado Fleury e o encontrou tranquilamente brincando com os filhos. Essa imagem de um torturador do regime militar entregue carinhosamente à sua família é também sintomática no cinema.

Em O poderoso chefão, pouco antes de morrer, Don Vito Corleone (Marlon Brando) está com o neto no jardim: correndo, rindo, se divertindo com a criança. Gângster, mafioso, o termo por si só já define a personalidade cruel, vingativa, do homem mandante e executor de assassinatos. Em casa, no entanto, é amoroso pai e avô.

No filme A cicatriz (Blizna, Polônia, 1976), de Krzysztof Kieslowski, importante membro do partido comunista é encarregado de comandar a construção de uma indústria de fertilizantes químicos em área florestal da Polônia, resultando no desmatamento que prejudica milhares de famílias que vivem do sustento da terra. A justificativa do regime comunista polonês para este atentado é a criação de empregos, o desenvolvimento da economia. Nada pode deter o progresso.

O diretor deve seguir essas diretrizes, mesmo tendo que se confrontar com alguns fantasmas do passado, pois ele viveu naquela cidade. Quando a indústria entra em operação, um grande desastre ambiental é provocado e o diretor tenta reverter tudo, mas já é tarde.

A cicatriz termina com a imagem do diretor brincando com o neto dentro de casa, após se demitir do cargo. Lá fora, a fábrica continua a consumir, movendo a roda incessante da sociedade. O diretor é apenas instrumento da engrenagem e cumpriu o seu dever. Imagens ternas como pais brincando com filhos não são capazes de perdoar a imensa culpa de determinados protagonistas da história.