
O cenário é a sacada do hotel com vista para a praia de Copacabana. Devlin olha o mar, Alicia o puxa pelo braço. Os dois se beijam com ardor. Rostos colados, conversam sobre o clima. Tocam os lábios, voltam a conversar, agora sobre o jantar. Tocam novamente os lábios, a câmera sempre em close, ângulo lateral dos rostos. Os lábios estão quase colados, conversam sobre o frango do jantar. Lábios se tocam, conversam, lábios se tocam, conversam. Não há cortes, é um plano sequência. Entram abraçados no quarto. Caminham, Alícia com o rosto deitado no ombro de Devlin. Ela pega o telefone, disca sem olhar para o teclado, os lábios ainda colados nos de seu amante. Se beijam, agora o fone está abaixo do queixo dos dois. Devlin pergunta “há algum recado para mim?”. Desvia os lábios do fone, toca a boca de Alicia. Todos os beijos são rápidos, sensuais, intercalados por frases cotidianas, uma ou outra alusão ao amor. Devlin se volta para o fone, pede que o atendente leia o recado para ele. Enquanto escuta, beija Alícia. Põe o fone no gancho, conversam sobre a missão de Alícia no Rio de Janeiro. Os lábios não param de se tocar. Caminham até a porta, se despedem, Alícia fecha a porta. Corta.
O plano sequência tem cerca de três minutos de pura sensualidade, erotismo, em uma época na qual códigos que imperavam entre os anos 30 e 40 impediam que diretores filmassem longos beijos. Hitchcock ludibriou os comitês de ética fazendo com que os amantes se beijassem por alguns segundos, se separassem, se beijassem por mais alguns segundos, assim por diante, sem cortes. A ousadia do diretor se transformou em um dos mais famosos planos da história do cinema. Contestador e criativo, atesta o domínio perfeito da técnica cinematográfica a serviço da narrativa, marca indelével de Hitchcock. “Ele jamais escolheu um ângulo arbitrariamente. Sempre havia uma razão. E sempre tinha a ver com o enredo. Ele sempre dizia: esclarecer, esclarecer, esclarecer. Queria tudo muito claro para o público, não queria deixar dúvidas, porque perderia o interesse. A base do suspense é o conhecimento.” – Peter Bogdanovich
A trama, adaptada do conto The song of the dragon, de John Taintor Foote, guarda semelhanças com a história de Mata Hari. Alicia é filha de cientista condenado à prisão por colaboração com o regime de Hitler. Ela é abordada por Devlin, agente secreto do governo americano que tenta seduzi-la para tentar convencê-la a se infiltrar em um grupo de nazistas que atua no Rio de Janeiro. O chefe dos nazistas é Alexander Sebastian que, no passado, foi apaixonado por Alicia. Quando sabe dos planos de Devlin, Alicia diz: “Mata Hari. Ela faz amor em nome dos documentos”.
A trama está posta: espionagem, agentes infiltrados, romance, negação a princípios morais em favor da pátria. O roteiro de Ben Hecht carregou a trama de conotações políticas, inserindo um elemento que colocou Hitchcock na lista de investigados do FBI: o urânio como substância que poderia ser usada pelos alemães na fabricação da bomba atômica. O filme foi lançado cerca de um ano antes da explosão de Hiroshima, quando a construção da bomba ainda era segredo de estado nos Estados Unidos. Hitchcock diria que o urânio era apenas o macguffin da trama, pretexto para guiar a história de casal de espiões apaixonados, sendo que a mulher tem que se casar com o nazista para se infiltrar no grupo e conseguir informações.
Nesse ponto reside grande parte da ousadia do roteiro e do filme. O produtor David Silznick afirmou que “quando Ingrid Bergman entra na chamada cova do leão e se casa com Sebastian, o filme torna-se dela.” Alicia é dos grandes personagens femininos do cinema. No rascunho do roteiro ela era prostituta e alcoólatra. O alcoolismo foi mantido na versão final, no início do filme ela dirige bêbada na estrada, com Devlin ao lado. Fica claro que ela teve vários casos, motivo para Devlin, tomado por preconceitos, evitar o romance. Ele a considera vulgar e bêbada, sugerindo isso em partes da trama. Quando se apaixona por Devlin, Alicia aceita a missão, como quem caminha para a tragédia pessoal. Ingrid Bergman está perfeita no papel, encarnando com paixão e tristeza seu destino, além de exalar sensualidade em cada cena.
Interlúdio tem sequências memoráveis: Alícia e Devlin dentro da adega de vinhos na mansão de Sebastian, procurando garrafas com urânio, o suspense hitchcockiano na essência; a incrível cena que começa em um plongée do salão de festas, mostrando todos os presentes, a câmera desce lentamente até fechar na chave da adega que está na mão de Alícia – os produtores tiveram que construir uma grua especial, a câmera colocada dentro de uma gigantesca armação de madeira; o final, quando Sebastian volta para dentro de casa, entra no covil dos nazistas, agora como a vítima, e a porta se fecha. E a famosa sequência que abre esse texto, ideia, que segundo Hitchcock nasceu da observação de uma picante cena que mais parece saída de sua imaginação sem fim.
“A famosa cena do beijo. Aquilo foi de propósito, porque eu não queria nem cortar. Eu queria que continuassem se abraçando. Minha ideia foi que a câmera também fosse incluída nisso. Eles se abraçam e nós nos unimos a eles. Fui seguindo, sem abandonar o close. Como eu disse, a base de toda a cena foi não interromper o momento romântico. Esse foi o objetivo, não o movimento de câmera. Tive a ideia vários anos antes dentro do trem para Boulogne depois de atravessar da Inglaterra para a França até Paris, no ETAP, que fica nos arredores de Boulogne. Era uma tarde de domingo. Havia uma fábrica de tijolos antiga na estrada e essa fábrica tinha um muro bem alto. Havia duas figuras encostadas no muro, um menino e uma menina, e o menino estava urinando no muro. Mas a menina continuou abraçando-o. Ela olhou para baixo para ver o que ele fazia, olhou para os lados, depois olhou para baixo de novo e tudo o mais. A ideia veio daí: ela não conseguia soltá-lo. Um romance não deve ser interrompido nem para urinar.”
Interlúdio (Notorious, EUA, 1946), de Alfred Hitchcock. Com Cary Grant (Devlin), Ingrid Bergman (Alicia Huberman), Claude Rains (Alexander Sebastian), Louis Calhern (Paul Prescott), Leopoldine Konstantin (Mme. Sebastian), Reinhold Schunzel (Dr. Anderson).
Referência: Alfred Hitchcock. Interlúdio. Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema. Cássio Starling Carlos, Francisco Inácio Araújo Silva Junior e Pedro Maciel Guimarães. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2018