
Winchester 73 (EUA, 1950), de Anthony Mann, é o típico faroeste da era de ouro do gênero. Tem o pistoleiro bom, lutando por causa nobre. O pistoleiro mau, bandido destemido, inescrupuloso e irônico. A mocinha desprotegida, amorosa, dançarina, pianista de saloon, ou seja, prostituta aos olhos da cidade. O fiel amigo do pistoleiro bom. Os não tão fiéis assim amigos do pistoleiro mau. Homens arruaceiros que entram e saem atirando na cidade por diversão. O almofadinha covarde. O exímio jogador de cartas. Índios que atacam nas estradas. O pelotão da cavalaria americana.
Como essa diversificada galeria de personagens se cruza durante o filme? Através do Winchester 73, mítico rifle de repetição, cobiçado por brancos, índios e qualquer pessoa com idade suficiente para apertar um gatilho, segundo a lenda “um em mil.”
O filme começa em Dodge City, no feriado de 4 de julho, onde acontece uma disputa de tiro. O prêmio ao melhor atirador é o Winchester 73. Lin McAdam (James Stewart) acaba de entrar na cidade à procura de seu inimigo, Dutch Henry Brown (Stephen McNally). É a estrutura clássica do western: o pistoleiro bom caça o pistoleiro mau pelas cidades, planícies e montanhas até o duelo final. Os dois pistoleiros são obrigados pelo xerife a deixarem suas armas na delegacia – ninguém pode andar armado na cidade. Eles participam do concurso e empatam em todas as etapas. No final, Lin ganha o concurso. Na sequência, Dutch rouba o rifle de Lin e foge. A partir daí, a arma vai passar de mãos em mãos enquanto a caçada continua.
Esse prólogo é homenagem do diretor Anthony Mann aos filmes de faroeste. Dodge City, no Kansas, é das mais famosas cidades do oeste americano. A história de Dodge City é contada pelos vaqueiros que passavam pela cidade conduzindo rebanhos de gado, pelos pistoleiros que frequentavam os saloons e por dois lendários xerifes: Wyatt Earp e Bat Masterson. São essas duas figuras, retratadas diversas vezes no cinema, que confiscam as armas dos pistoleiros. Durante o filme, mais dois homens históricos são citados, o presidente Grant e o General Custer. Essas citações funcionam como uma espécie de reverência a grandes filmes do gênero que reproduziram as epopeias heroicas de Dodge City, de Wyatt Earp, de Bat Masterson, do General Custer.
Até agora estamos falando das características básicas do gênero, encontradas uma a uma no clássico de Anthony Mann. Mas a linha condutora do roteiro, a ideia do rifle passar de mãos em mãos, confere ao filme caráter singular por dois motivos. Primeiro, as soluções de roteiro seguem caminhos improváveis, algo próximo como comédias de erros, aquelas películas nas quais um objeto desejado é perdido-achado-perdido-achado nas mais inusitadas situações.
É exatamente o que acontece com o rifle. À medida que Lin empreende sua caçada, a arma muda de dono. Do pistoleiro bom para o pistoleiro mau, para o jogador de cartas, para o chefe índio (acredite, interpretado por Rock Hudson em início de carreira), para o almofadinha covarde, para o pistoleiro arruaceiro, de novo para as mãos do pistoleiro mau, até voltar às mãos do pistoleiro bom. Tudo isso em uma sequência improvável de acontecimentos.
O segundo motivo que diferencia Winchester 73 do faroeste tradicional é a leitura tenebrosa. O caráter maldito do rifle aproxima o filme do gênero terror. Todos que possuem o rifle mudam de personalidade. E todos, à exceção do herói, morrem. O enredo é repleto de ação e tiroteios, mortes covardes e heroicas. Em todos os conflitos o Winchester 73 está presente: nas mãos, na sela do cavalo, no chão do vale, como uma maldição. No começo do filme, o rifle está em uma espécie de redoma de vidro, intocável, todos o observam com o olhar da cobiça, pecado capital. A primeira reação dos personagens que conseguem segurá-lo é o fascínio absoluto, depois o gesto típico de aproximar a mira do olho e simular um tiro – o desejo de matar. Até o irretocável xerife Wyatt Earp diz “daria a mão direita, quer dizer, a esquerda para ter um rifle desses”.
Clássicos do cinema como Ouro e maldição (1924) e o O tesouro de Sierra Madre (1948) exploraram o ouro como provocador de transformações na personalidade humana. Conferir a um rifle esse mesmo poder é atingir o âmago da sociedade americana. Em determinada cena, um pistoleiro diz “estou me sentindo nu”, se referindo ao fato de ter deixado sua arma na delegacia da cidade. Revólver na cintura e rifle na sela do cavalo foram componentes da formação dos Estados Unidos. O romantismo de saque primeiro é coisa do cinema, a glamourização de uma história sanguinária, recheada de mortes brutais, assassinatos covardes, genocídio da raça indígena americana, brigas por disputas de terra, de gado. A arma de fogo era a expressão desse poder.
No final de Winchester 73, após duelar com seu inimigo, Lin entra novamente na cidade e reencontra seu amigo e Lola. O final feliz, os sobreviventes da maldição tão comuns nos filmes de suspense e terror. Mas a cena final é significativa: close na coronha do rifle que está entre os dois amigos.