Umberto D

O filme começa com uma passeata de aposentados italianos, em direção à sede do Governo, reivindicando aumento das pensões. São dispersados pela polícia, correm e se abrigam em prédios ao redor, demonstrando o cansaço natural da idade. 

É hora de seguirmos a vida anônima de um destes aposentados que vivem à margem da sociedade: Umberto D (Carlo Battisti), junto com seu inseparável cãozinho Flike. Quando vai embora da manifestação, tenta vender a outro aposentado seu velho relógio. Depois almoça no balcão de um abrigo para necessitados. Escondendo-se, coloca seu prato no chão para que Flike possa também comer. Finalmente chega na casa onde aluga um pequeno quarto. Ao abrir a porta, descobre que um casal está na sua cama. 

Esse início, marcado por cenas do cotidiano, revela o drama de Umberto D. Sem dinheiro o suficiente para manter sequer suas necessidades básicas, sem uma casa que possa ser chamada de sua, sem família, pressionado pela dona da pensão que aluga seu quarto à tarde para adúlteros e o ameaça de expulsão caso não coloque em dia o aluguel. Resta a Umberto D. seu adorado cão.

“Umberto D. foi filmado nas ruas de Roma e os papéis principais são interpretados por atores não-profissionais, o que dá ao filme maior urgência e autenticidade. Uma das maiores críticas ao neo-realismo é que o tratamento melodramático dispensado à história menor dilui a mensagem social mais ampla e a reivindicação de realismo do próprio filme. Com sua história trágica, contada sem pudor, sobre o desespero de um senhor de idade e o seu amor pelo seu bicho de estimação, e com sua visão incisiva das injustiças sociais, Umberto D oferece a oportunidade perfeita para o espectador refletir sobre essa questão, que diz respeito a um dos movimentos mais influentes da história do cinema.” 

Essa potência narrativa está expressa em cenas inesquecíveis em um filme que recusa os princípios básicos da narrativa. “Umberto D. cumpre o desejo do diretor Vittorio De Sica e do roteirista Cesare Zavattini: levar o neorrealismo a um nível até então nunca visto, ponto que a situação perde espaço para o homem, em que o obstáculo dá lugar ao instante. O tempo não é mais moldado por acontecimentos interdependentes, mas por episódios de aparência aleatória, reais em excesso, que desembocam sempre no homem, nos seus conflitos e contradições.” – Rafael Amaral. 

Para alguns críticos e até mesmo cineastas do calibre de Luis Bunuel e Alfred Hitchcock esses tempos mortos devem ser evitados na narrativa cinematográfica. “Tempos mortos” para os neorrealistas é a vida e a vida é o próprio cinema. Em uma das cenas mais famosos do filme, a empregada Maria (adolescente grávida que namora dois soldados, portanto, não sabe quem é o pai da criança) acorda de manhã, vai para a cozinha, põe fogo no jornal para queimar formigas na parede, coloca café na máquina, senta-se no banco e começa a mover lentamente a manivela da maquininha. Uma lágrima escorre pelo seu rosto. Maria estende o pé e tenta fechar a porta. Cenas assim, ganham dimensões simbólicas nas palavras de André Bazin: “Trata-se ali de tornar espetacular ou dramático o próprio tempo da vida, a duração natural de um ser a quem nada de particular acontece.”

É a vida dessas pessoas marginais, que ninguém nota, que não importam a ninguém. É a vida de Umberto D. que pode ser muito bem a vida de meu pai e inúmeros outros cidadãos que foram enganados pela política previdenciária no Brasil e passaram, depois de décadas de trabalho, de contribuição ao estado, a depender da ajuda dos filhos. Poderia ser a vida do pai de Vittorio De Sica, a quem ele dedica o filme. Diferente de outros, Umberto D não tem ninguém a quem recorrer, caminha sozinho e anônimo pela vida que só ganha sentido em sua relação de amor com Flike. Flike que, ao contrário de uma sociedade inteira, vê, ama e se entrega à Umberto Domenico Ferrari. 

Umberto D (Itália, 1952), de Vittorio De Sica. Com Carlo Battisti, Maria-Pia Casilio, Lina Gennari.

Referências: 

1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider (editor geral). Rio de Janeiro: Sextante, 2008

Catálogo do bluray Ladrões de Bicicleta/Umberto D. Versátil Digital Filmes. 

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