
No início dos anos 80, estudei no Estadual Central. Acabada as aulas, descia a pé, só ou em turma, pela Rua São Paulo em direção ao centro. Cerca de dois quarteirões abaixo do colégio, uma bela casa, típica do bairro de classe média alta, deixava a vista adentrar pela grade, se deparar com o jardim e dois grandes cachorros São Bernardo, lindos, imponentes. Os cães andavam do característico jeito desengonçado até a cerca, metiam os focinhos pela grade a espera de carinho. Impossível não estender a mão, se abaixar e morrer de vontade de rolar na grama com dois gigantes tão carinhosos, infantis.
Quando Cujo (EUA, 1983), de Lewis Teague estreou nos cinemas mais ou menos na mesma época, o terror tomou conta de mim. Não necessariamente pelo filme em si, produção de baixo orçamento, o típico terror B que imperava na época. Durante dias não consegui me desvencilhar da premissa: o horror, movido por razões incompreensíveis, como vírus que se apossam do corpo após uma mordida de morcego, pode irromper dos seres mais dóceis. Um cão São Bernardo.
Baseado na obra de Stephen King, livro lançado em 1981 como Cão Raivoso, Cujo centra a narrativa em um casal em crise. Donna Trenton (Dee Wallace) e Daniel Hugh Kelly (Vic Trenton) têm um filho, Tad (Danny Pintauro). Donna tem um caso com um belo morador da pequena cidade litorânea onde vivem e o casamento caminha para a separação.
No entanto, Cujo é o protagonista. No início do filme, o cão corre meio como brincadeira atrás do coelho no bosque. Passa por gramados, arbustos, riacho e enfia a grande cabeça na toca do coelho. Os latidos de Cujo despertam a ira de morcegos no teto, pois o que era aparentemente uma toca de coelho é, na verdade, refúgio destes aterradores seres noturnos. Após a mordida, a narrativa acompanha uma das grandes transformações de personagem.
O animal começa a lutar consigo mesmo, alternando entre a tradicional docilidade e atitudes raivosas que selam seu destino. Em alguns momentos, o cão se afasta de pessoas com quem convive, como se em fuga do instinto desconhecido que começa a tomar conta. Aos poucos, as alternativas estéticas e de linguagem do fascinante cinema B ajudam o espectador a se defrontar como emoções que variam do puro medo ao repúdio (como eu) por colocarem o São Bernardo nesta situação.
“A fotografia de Jan de Bont, a montagem de Neil Travis e a trilha sonora de Charles Bernstein são alguns dos elementos que transformam a obra em uma experiência fascinante e também angustiante. O confinamento de Donna e Tad num carro faz do ambiente claustrofóbico uma ameaça tão grande quanto o animal que os cerca. Destaque ainda para os departamentos de arte e maquiagem, principalmente na abordagem do cachorro. Eles conseguiram transformar um belo animal em algo realmente horripilante. Para isso, não se preocuparam com excessos. É gore, é para ser grotesco. E é por isso que funciona de forma tão eficiente.” – Lucas Salgado.
Ainda hoje, ao rever o filme, não consigo me assustar com a impressionante sequência do carro parado em frente à velha e suja oficina, o cão tentando matar mãe e filho enclausurados. Só consigo pensar que um São Bernardo não merece se transformar naquela grotesca encarnação do mal.
Referência: Stephen King. O medo é seu melhor companheiro. Breno Gomes e Rita Ribeiro (org.). Catálogo da mostra patrocinada e exibida no Centro Cultural Banco do Brasil.