Duquesa

A casa está em silêncio nesta noite fria de julho. Todos dormem. Ajeito os travesseiros, o edredom espera esparramado no sofá. Perco-me durante alguns segundos no irritante processo de configurar idioma e legenda do DVD. Apago a luz, me acomodo e num breve instante, antes do filme começar, meus olhos procuram o chão da sala, o hábito de ver ali a almofada cor-de-rosa, Duquesa enrodilhada, o focinho escondido entre as patas, as longas orelhas peludas resvalando no chão.

Nem sempre ela foi serena assim. Na juventude raivosa, ela levantava-se rápido e corria da sala até o quintal, deixando no rastro latidos curtos e roucos. Parava, ouvidos atentos, olhos procurando suspeitos. Ao menor sinal, latia para essas ameaças encobertas que alegram a vida do cão doméstico. Atrás da proteção dos muros da casa, latem para o vento.

Duquesa mostrava garras também para os visitantes. Certa feita, se agarrou à barra da calça do entregador de gás. Observava atenta da varanda, sentada no alto da escada, o leiturista da Copasa – olhos sedentos, dentes em prontidão. Pedreiros, pintores, marceneiros, freqüentadores da infinda reforma de minha casa, tomavam sempre o cuidado de saber o paradeiro da cocker antes de entrar. “É pequena mas brava.” – diziam. Até mesmo a diarista de tantos anos olhava ressabiada ao entrar. Duquesa levantava a cabeça discretamente, rosnava por dois ou três segundos e, desapontada por ver gente conhecida, voltava a deitar o focinho entre as patas peludas.

Seu jeito de comer também era ruidoso. Colocava alguns grãos de ração na boca e os espalhava pelo chão. Depois pegava grão a grão e antes de mastigar latia para o alto.

Com o tempo, os latidos diminuíram, a maturidade serenou pouco a pouco a revolta contra o vazio. A diarista entrava, Duquesa levantava discretamente a cabeça, nada de rosnados. Assistia tranqüila o entregador de gás deixar o botijão. Do alto da escada, não levantava mais os olhos para o leiturista da Copasa. Passou a marcar os lugares da casa com sua serenidade avançada.

Durante os almoços em família, ficava enrodilhada na almofada cor-de-rosa no canto. Andava perdida pela casa até se aconchegar na presença de um dos moradores. Se minha filha dormia à tarde, Duquesa deitava aos pés da cama. Se minha esposa passava a tarde trabalhando no jardim, Duquesa deitava na varanda, em vigília adormecida. Perto da cadeira de minha escrivaninha, ela ocupava um pequeno espaço. Só não entrava no quarto do meu filho: arredio a cães, ele a enxotava. A cachorra dava então algumas voltas, chegava o focinho no limite do ambiente proibido, se voltava e deitava na soleira da porta em solene protesto.

A idade a vencia. Não latia mais. Os visitantes a quem tanto amedrontava agora se referiam a um pequeno bicho de pelúcia estendido em algum canto da casa, o focinho entre as patas, a respiração tranqüila, protegida finalmente de todas as ameaças que tanto perseguiu.

Nesta noite fria de inverno, meus olhos procuram em vão a almofada cor-de-rosa no centro da sala antes do filme começar. Penso que não é uma boa noite para filme. Vou ao computador me despedir de Duquesa contando sua breve história. História que começou quatorze anos atrás, quando minha filha chegou em casa com um filhote parecido com um pequeno bicho de pelúcia, remexendo em suas mãos, tentando se soltar para correr pela casa com seus latidos curtos e roucos.

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