
A adaptação literária para o cinema sempre suscita controvérsias, principalmente de livros de autores consagrados como Charles Dickens. O livro Oliver Twist foi publicado no formato de folhetins, episódios mensais em jornais, portanto, já com uma estrutura que se adequa ao cinema, com as viradas na narrativa.
Na adaptação feita em 1948, David Lean, junto com o roteirista Stanley Haynes, respeitou a essência da história. Uma jovem mulher dá à luz a um menino e morre em seguida. A criança ganha o nome de Oliver Twist e é criada em um reformatório, sofrendo com trabalhos forçados, alimentação precária e castigos físicos. Com nove anos, Oliver foge para Londres e cai nas mãos de Fagin, bandido que controla uma gangue de meninos que roubam nas ruas da cidade. A questão da pobreza, da marginalidade de adultos e crianças nas ruas, de um sistema religioso cruel e punitivo, são pontos evidentes de críticas na obra de Dickens.
David Lean sempre foi adepto do cinema clássico, buscou contar histórias bem estruturadas, respeitando os princípios da narrativa de gênero e privilegiando a força das imagens. Nesse sentido, vale a pena se debruçar sobre duas sequências que diferem do livro e tratam de aspectos simbólicos e do uso da linguagem audiovisual.
A abertura foi criada especificamente para o filme. Nuvens pesadas e relâmpagos tomam conta dos céus. Corta para galho seco de uma árvore, ao fundo as nuvens. Uma folha cai lentamente, imagens das águas movimentadas de um lago. No alto de uma pequena colina, surge uma jovem caminhando, nuvens assustadoras sobre ela. Plano médio, a bela jovem está assustada, fustigada pelo vento. Ela caminha, sons de trovões, imagens alternadas de galhos secos, da jovem, do céu, do vento na relva, aumentam a sensação de dor e sofrimento. Ela vê uma casa ao longe. Começa a chuva forte, plano próximo evidencia a gravidez. Ela chega à grade da casa iluminada por um lampião e pela luz dos relâmpagos. Entra, corta para imagem da lua, sons de um bebê chorando.
São seis minutos de narrativa visual, inspirada na estética expressionista. “Oliver Twist é meu melhor trabalho como diretor de fotografia. A cena de abertura com a mãe de Oliver que atravessa um campo e chega ao reformatório foi feita nos Estúdios Pinewood. Fazíamos muita coisa em estúdio naquele tempo, mas o espaço era ótimo. Instalei espelhos para refletir nuvens no forro do estúdio para que parecessem se mover sobre o campo. O efeito foi espetacular. Vimos a filmagem no dia seguinte e David me disse que deveríamos refilmar. Por que, David? Gostei do resultado. Ele disse que estava romântico demais e que queria contornos menos regulares. Romântico demais. E usamos outro dia para refilmar a cena. As coisas eram assim naquele tempo. Redesenhei a cena com contornos mais agressivos e David gostou do resultado.” – Guy Green.
David Lean teve uma ideia ousada para essa sequência, segundo o produtor Ronald Neame. “A mãe de Oliver para junto a uma árvore quando as dores do parto começam. Filmamos isso com a câmera inclinada enquanto duram as dores. Quando as dores diminuem, reposicionamos a câmera em nível plano. Foi um conceito visual da dor. Eu nunca tinha visto antes, foi uma técnica inédita.”
A outra sequência é o momento da morte aterradora de Susan. Charles Dickens descreveu a morte da jovem em detalhes e costumava usar esse trecho nas famosas leituras que fazia de seus livros em público. A opção de David Lean foi por uma das técnicas mais sugestivas da linguagem, a elipse de enquadramento.
Close no rosto de Susan dormindo serena. Ela acorda com barulho da porta se abrindo e fechando, vê um móvel sendo arrastado e protegendo a porta. Bill Sikes se posta diante da cama, o rosto transtornado, molhado de suor, olhos arregalados. Susan faz que vai acender a lamparina. “Tem luz o suficiente para o que preciso fazer.” – diz Bill. Segue-se uma assustadora briga entre os dois, Bill arrastando Susan pelo quarto que, aos berros, tenta se livrar das agressões. Bill pega uma pesada barra de ferro, levanta em direção à Susan, caída no chão. Corta para o cão de Bill. Ele olha tudo com tremores pelo corpo, corre e arranha em desespero a porta, tentando fugir do que o espectador não vê.
Exemplos que reforçam o talento de grandes diretores que se debruçam sobre livros que tanto amamos, sobre as narrativas clássicas que formaram gerações e gerações de leitores, e os transformam em forças visuais poderosas. O encontro das minhas duas paixões, livro e filme, tratados com a genialidade de Charles Dickens e David Lean é sempre um encontro comigo mesmo.
Oliver Twist (Inglaterra, 1948), de David Lean. Robert Newton (Bill Sykes), Alec Guinness (Fagin), Kay Walsh (Nancy), Francis L. Sullivan (Mr. Buble), Henry Stephenson (Mr. Brownlow), Ralph Truman (Monks), John Howard Davies (Oliver Twist).
Referência: extras do DVD David Lean / Oliver Twist. Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema.