O filme começa com o afogamento de Xingxing, uma criança, em um reservatório, nos anos 80. Ele não sabia nadar, mas foi incentivado pelo seu amigo Hao a entrar na água. Essa tragédia demarca a história de duas famílias, os pais das crianças, ao longo de três décadas.
A narrativa traz fortes conotações políticas, acompanhando a evolução da China na visão dessas duas famílias e seu pequeno grupo de amigos. A política do filho único é o tema central, mas o desenrolar da trama aponta ainda a abertura econômica, que provocou desemprego principalmente entre os operários (os pais de Xingxing), a modernização das cidades e o consequente enriquecimento de uma camada da população (os pais de Hao).
A montagem invertida é um dos grandes destaques de So long, my son. Presente e passado se intercalam, sem respeitar a cronologia dos acontecimentos. Os cortes secos, sem demarcação das passagens de tempo, exigem do espectador atenção especial para entender a história. Jingchun Wang e Mei Yong, os pais da criança afogada, conquistaram os prêmios de melhor ator e atriz no Festival de Berlim.
So long, my son (Di Jiu Tianchang, China, 2019), de Wang Xiaoshuai . Com Jingchun Wang (Yaojun), Mei Yong (Liun), Qi Xi (Moli), Jiang Du (Hao), Liya Ali (Haiyan).
O filme de média-metragem de Wong Kar Wai (cerca de 60 minutos) foi lançado como parte de uma trilogia de contos, Eros, junto com dois outros episódios dirigidos por Antonioni e Steven Soderbergh. A narrativa com forte teor erótico acompanha o jovem alfaiate Zhang que, em linha de sucessão de seu mestre, deve fazer os vestidos da bela Sra. Hu. Logo no primeiro encontro, ele é seduzido por ela, em um jogo que mistura prazer e dominação.
Este primeiro encontro fascina o espectador pela estética característica de Wong Kar Wai – os planos fechados cobertos de cores quase extravagantes do ambiente, a câmera num misto de sensibilidade e fetiche à medida que as mãos da Sra. Hu provocam o jovem alfaiate. O tema do filme é também o envelhecimento do corpo, não da memória: à medida que a doença consome o corpo da Sra. Hu, os dois vão viver nos desejos daquela primeira noite mágica.
The hand (China, 2004), de Wong Kar Wai. Com Gong Li (Miss Hua), Chang Chen (Zhang), Tin Fung (Master Jin).
No final do filme, uma frase revela: “Todo este filme foi interpretado por atores não profissionais.” A influência neorrealista é expressa não só nesta declaração, mas em toda a narrativa. Xiao Wu ganha a vida batendo carteiras nas ruas da cidade. Se considera quase um artista em sua profissão e reluta em abandonar a atividade, a exemplo de alguns de seus antigos companheiros. Xiao fica sabendo que um destes amigos, com quem compartilhara grandes momentos, está de casamento marcado. O batedor de carteira não é convidado para o casamento e passa por um grande conflito. Ele começa a frequentar um bordel e se apaixona por uma prostituta, mas tem dificuldades em se entregar ao relacionamento.
A câmera segue o protagonista pelas ruas da cidade como uma testemunha das ações e das pequenas transformações dos personagens. Em determinado momento, Xiao, depois de inúmeras recusas, decide cantar com a prostituta em um jogo de karaokê. Entrega-se à canção com emoção reveladora. São as nuances deste cinema realista e ao mesmo tempo intimista que marca as obras de Jia Zhangke. A conjunção destas duas características é de uma tristeza perturbadora na sequência final, quando Xiao é humilhado diante de dezenas de pessoas na rua.
Artesão pickpocket (I Xiao Wu, China, 1997), de Jia Zhangke. Com Wang Hong Wei, Hao Hong Jian, Zuo Bai Tao, Ma Jin Rei.
O filme é um misto de documentário e ficção. A narrativa acompanha personagens de três gerações, interpretados por atores profissionais, que trabalharam em uma fábrica de construção de peças para a aeronáutica. A fábrica, desativada e em ruínas, serve como elemento de transição entre os depoimentos que são prestados direto para a câmera, assim como nos documentários mais tradicionais. As histórias pessoais traduzem também as importantes transformações políticas e econômicas que acompanham a China. Em determinado momento, é apresentado a maquete de um empreendimento residencial de luxo que ocupará o espaço da antiga fábrica.
Realidade e encenação se encontram em momentos emocionantes, a exemplo do encontro entre um funcionário e seu antigo mestre na fábrica, agora um ancião entregue às lembranças de seu trabalho. Outro ponto de destaque é a trilha sonora, recheada de canções pops a embalar a narrativa.
24 City (Er shi si cheng ji I, China, 2008), de Jia Zhangke. Com Joan Chen, Lu Liping, Zhao Tao, Chen Jianbin.
Os jovens Ho Po-Wing e Lai Yiu-Fai se mudam para Buenos Aires onde vivem um intenso relacionamento, marcado pela tensão dos amantes que se dividem entre a amorosidade e a agressividade. A estética do gênero road-movie se apresenta fascinante em uma viagem frustrada que os dois tentam fazer para conhecer as Cataratas do Iguassú e nas próprias andanças por Buenos Aires.
Wong Kar Wai conquistou a Palma de Ouro de direção em Cannes, referendada pela sua parceria com o diretor de fotografia Christopher Doyle. A estética fascinante das cenas externas – as estradas, as cataratas, Ushuaia, as ruas da cidade – contrastam com o sentimento opressivo que provocam as cenas gravadas no pequeno quarto de pensão, onde os namorados vivem momentos de idílio e tensão. Outro ponto de destaque são as primorosas interpretações de Leslie Cheung e Tony Leung que se entregam aos papéis no limiar entre a atuação e a realidade.
Felizes juntos (Chun gwong cha sit I, China, 1997), de Wong Kar Wai. Com Leslie Cheung (Ho Po-Wing), Tony Leung (Lai Yiu-Fai), Chang Chen (Chang).
A narrativa apresenta duas histórias paralelas, dois personagens que transitam pelas noites de Hong Kong, praticando ações que beiram o surrealismo. Um assassino de aluguel entra em prostíbulos, bares e casas de jogo atirando com duas armas. Sua profissão é matar e não se importa com isso, simplesmente mata e reza para ter atingido os alvos certos. Um jovem mudo invade estabelecimentos comerciais fingindo ser funcionário, extorquindo dinheiro dos clientes com atitudes extravagantes, como entupir de sorvete uma família.
O quinto filme de Wong Kar Wai oscila entre o humor, a violência, sentimentos de euforia e depressão, essas coisas que compõem as ruas e as noites das metrópoles. A câmera acompanha os personagens distópicos freneticamente, imagens fragmentadas, cortes abruptos, estética extravagante, é o painel da noite de Hong Kong bem ao estilo de Wong Kar Wai.
Anjos caídos (Do lok tin si I, China, 1995), de Wong Kar Wai. Com Leon Lai (Wong Chi-Ming), Michelle Reis (The Killers Agent), Takeshi Kaneshiro (He Zhiwu), Charlie Yeung (Charlie).
Wong Kar Wai filmou essa fascinante incursão pelos encontros casuais das ruas de uma cidade em apenas 23 dias. São duas histórias que se confundem, se misturam, se integram, essas coisas de destinos.
O policial 223 tenta esquecer sua antiga namorada, comendo sem parar enlatados que estão perto de perder a validade. Em um bar, conhece uma bela e misteriosa criminosa, cuja arma atira como nos bons filmes de Godard. O policial 663 tem um tórrido caso com uma aeromoça, que o abandona. Ele faz a ronda da cidade perto de uma lanchonete, onde trabalha uma despretensiosa e irreverente garçonete. Fascinada pelo policial, a garçonete passa a frequentar a casa do policial enquanto ele está no trabalho, promovendo mudanças sutis na decoração, deixando sua marca.
Amores expressos foi responsável pela revelação internacional do icônico diretor Wong Kar Wai e, por extensão, abriu os olhos do ocidente para o cinema contemporâneo asiático. O contraponto de cenas aceleradas e outras em câmera lenta estão presentes, assim como a exuberância visual, pontuada sempre por uma trilha sonora que, às vezes, apenas marca a trama, outras, toma conta do espaço cênico – destaque para California Dreams.
Não espere narrativa coerente, bem costurada em termos de roteiro. As duas histórias são fragmentos de encontros, como esses encontros entre jovens que tentam se reconciliar com seus amores.
Amores expressos (Chung hing sam I am I, China, 1994), de Wong Kar Wai. Com Brigitte Lin, Tony Chiu Wai Leung, Faye Wong, Takeshi Kaneshiro, Valerie Chow, Jinquan Chen, Lee-Na Kwan, Zhiming Huang, Liang Zhen, Songshen Zuo
Impossível não entregar todos os sentidos a esta bela história de amor não-concretizado. Chow (Tony Leung) e sua esposa se mudam para uma pequena pensão em Hong Kong no mesmo dia que Li-Zhen (Maggie Cheung) e seu marido. Os dois ocupam quartos vizinhos e se cruzam a todo instante na cozinha, nos corredores, nas ruas molhadas em frente à pensão. Desenvolvem uma fascinante atração mútua a partir de olhares e frases curtas, mas resistem em se entregar, mesmo após desconfiar que seus cônjuges estão tendo um caso. Detalhe: o marido de Li-Zhen e a esposa de Chow nunca aparecem, são vistos de costas, ou em ângulos sinuosos de câmara que não permite ao espectador identificá-los.
O estilo de Wong Kar Wai, que deixa a improvisação e a câmera traduzirem de forma livre a história, está arrebatador em Amor à flor da pele. Corpos transitam pelos espaços minúsculos como em uma dança sutil e elegante, a câmera lenta associada à música, à direção de arte, aos figurinos – destaque para os vestidos belos, simples e sedutores de Li-Zhen, tudo colabora para que o espectador se entregue a esses momentos sensoriais de indescritível beleza.
Amor à flor da pele (I fa yeung nin wa, China, 2000), de Wong Kar Wai. Com Maggie Cheung, Tony Leung, Chiu Wai, Ping Lam Siu.
A narrativa começa com exuberantes imagens futuristas de um trem em alta velocidade. Narração indica que o expresso leva a 2046, de onde ninguém nunca regressou, apenas um jovem que demonstra imenso sofrimento dentro de um dos vagões, sem saber há quanto tempo está ali.
Corta para a década de 60, o espectador descobre que 2046 é um livro escrito por Chow Mo-Wan (Tony Leung), o mesmo personagem de Amor à flor da pele. É a sua forma de tentar resgatar suas memórias de amor, principalmente de Li-Zhen. O filme retrata uma sucessão de casos amorosos, a maioria tristes e sem perspectivas, envolvendo Chow, que se entrega às mulheres quase por compulsão. Ele mora em um hotel, é fascinado pelo quarto 2046 e as mulheres que passam pelos seus dias entram em suas histórias.
2046 – Os segredos do amor faz parte da trilogia de dramas românticos, ou melodramas, de Wong Kar Wai. Completam a série Dias selvagens (1990) e Amor à flor da pele (2000).
2046 – Os segredos do amor (2046, China, 2004), de Wong Kar Wai. Com Tony Leung Chiu-Wai, Gong Li, Takuya Kimura.
Na primeira cena, a beleza do filme. Takata (Takakura Ken), velho pescador japonês, está sentado nas pedras, de frente para o mar. As nuvens de inverno dão tom acinzentado às águas, gaivotas passam grasnando, o sol é visto por frestas nas nuvens. Com uma carta na mão, ele pensa, “por motivos inexplicáveis meu filho Kenich e eu não nos falamos há anos. Há um grande abismo entre nós que me magoa muito. Quero que voltemos a ser próximos. Quando eu pensava em como dar um jeito no meu relacionamento com ele, Kenichi adoeceu e foi hospitalizado.”
A partir daí, o velho Takata busca a reconciliação com o filho. Não através do contato direto, mas iniciando uma jornada pela China, o longo caminho do título, em busca das coisas que o filho amava. Ele encontra pessoas com as quais não consegue se comunicar – a barreira das línguas. Conhece um garoto de dez anos de idade e não trocam uma única palavra inteligível. Através de gestos e atitudes, os dois deixam nascer um sentimento terno e carinhoso que se revela em comovente abraço de despedida.
Abraço que em nenhum momento o pai consegue dar no próprio filho. Não vence o abismo que os separa, é impedido pela incomunicabilidade que às vezes se impõe entre pessoas que se amam. À medida que conhece a China, o pai descobre não se lembrar do que o filho mais gosta. Lembrança que não existe porque, na verdade, foram momentos não compartilhados na infância, na juventude. O tempo que se perde.
Para marcar a falta de comunicação entre as personagens, o diretor Zhang Yimou utiliza recursos modernos da comunicação. O pai se comunica através do vídeo, da fotografia, do telefone celular. Ele registra na câmera digital os momentos mágicos que passa com o garoto quando estão perdidos em um desfiladeiro. Depois exibe as fotos, utilizando um monitor de TV, para o pai do garoto, encerrado em uma prisão. O velho japonês só entende o que os chineses dizem através da ajuda de uma intérprete, com quem mantém contato quase que somente através do celular.
Enquanto está viajando, ele recebe notícias da saúde do filho através da nora, pelo celular. No clímax do filme, o pai escuta a leitura da carta endereçada a ele pelo filho também pelo celular. Em todos esses momentos, o pai mantém silêncio perturbador. E depois se volta para esse sentimento de incompreensão. O que não fizemos pode ainda ser feito? O beijo que desejamos um dia pode acontecer? Ou esse beijo só teria sentido naquele dia? O mar. Talvez a primeira e última cena de Um Longo Caminho tragam respostas. Não existe sentimento de incompreensão mais forte do que estar sozinho diante do mar.
Um Longo Caminho (Qian Li Zou Dan Qi, China/Hong Kong/Japão, 2005). Direção de Zhang Yimou.