Sempre aos domingos

Há silêncio dentro do carro. O irmão cochila, rosto encostado no vidro lateral. Nem o fascínio que sente por carros e estradas consegue vencer o cansaço. A irmã dorme desde que o pai engatou a primeira marcha, deitada no banco, a cabeça em meu colo. No banco da frente, a caçula da família se esconde nos seios da mãe, participando inocente da apatia que toma conta de todos naquele final de tarde de verão. A volta para casa transcorre assim, silenciosa.

Naquela manhã, a mãe se levantou antes de todos. Sentada à mesa da sala de jantar, sacola de pães em frente, uma bisnaga de mortadela, ela prepara a comida do dia. A faca parte cada pedaço bem fino, todos da mesma espessura, como uma máquina de padaria. Ela conta os pães, separando três para cada filho. “Os meninos são pequenos, não dão conta de comer isso tudo. E ainda tem o almoço”, diz o pai, saindo do quarto. “Nadar dá fome e pão com salame é gostoso e barato.”, justifica a mãe, enquanto ajeita tudo em uma cesta: panela de arroz, outra com pedaços de frango assado por cima da farofa com linguiça. No isopor, o pai coloca os recipientes de plástico com k-suco, duas garrafas de cerveja, dois litros de água, cobrindo tudo com barras de gelo.

A estrada para Sete Lagoas é movimentada, uma pista para cada lado transforma meros quilômetros em uma jornada longa, retardada por fila de caminhões que exercitam a paciência do pai ao volante. Ele vira à direita, logo após a placa indicativa para Pedro Leopoldo. São aproximadamente cinco quilômetros de estrada de terra, poeira cobrindo as laterais do carro.

O pai passava a semana planejando pequenas viagens de um dia. Chegava em casa e logo após o jantar discutia com a mãe o destino. “Fiquei sabendo de uma cachoeira perto de Vespasiano. É dentro de uma fazenda, o pessoal chama de Bem-te-vi.” “É longe?” “Não.” Na outra semana: “O Milton me falou de um lugar muito bom, Jujulândia, estrada de Pedro Leopoldo, perto, tem três cachoeiras.”

Em uma das entradas de Jujulândia, o carro passa dentro do riacho, as rodas afundam, águas quase cobrindo os pneus. Depois, a estrada estreita, cortando um bosque, árvores dos dois lados, galhos atravessando pelo alto, formando uma alameda coberta. Os carros ficam na sombra das árvores, pouco distantes do rio.

A mãe estende uma grande toalha ao lado do carro, ajeita com carinho os utensílios, tomando cuidado de fechar bem as panelas, protegendo a comida contra as formigas com um pano de prato amarrado em cada uma. Coloca um pequeno colchão ao lado. Ela vai passar grande parte do dia à sombra, tomando conta do bebê, enquanto o pai desbrava com os três outros filhos.

“Cada um pega um tronco destes.”, ordena o pai, com dois juncos nos braços. Gastamos cerca de uma hora procurando mais pedaços pelos arredores, entrando em trilhas, passando dentro d’água com os pequenos troncos acima da cabeça. Ele vai até o carro, volta com alguns pedaços de corda: “Uma jangada, vamos fazer uma jangada.”

O pai não embarca na jangada, deixa a aventura para os filhos. Descemos rio abaixo, a jangada batendo em uma pedra ou outra, aos poucos as cordas afrouxam, sensação de que todos os troncos vão se soltar. Quase no final da corredeira, pulamos e deixamos o que restou da jangada seguir seu curso. Olho para o alto, o pai gesticula alegre.

Agora ele também está silencioso. Olhar fixo na estrada, seguindo lento a fila de carros que se forma na volta para casa. A mãe, solidária no cansaço, vigia com o canto dos olhos, atenta ao marido, pronta para um cutucão caso note um cochilo. O sol, já fraco, rastro amarelado no céu, decreta o final do dia.

Eu tento manter os olhos abertos, mas sinto aos poucos o rosto tombar sobre o peito. Antes de adormecer, penso na semana, o pai e a mãe discutindo um novo destino para o domingo. Sempre aos domingos.

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