The lost weekend

Depois do trabalho, o pai descia do ônibus e entrava direto no bar. Boteco copo sujo, desses que tem em todo bairro. Portas de aço, mesas e cadeiras de plástico marcadas por propaganda de cerveja, sinuca, balcão refrigerador, estufa com salgadinhos… Tudo começou assim. Amigos no final do dia, conversas sobre futebol, a inflação que não cai, o preço da carne pela hora da morte, política, assuntos da rua mesmo.

Como sei disso? É papo de bar, todo dia a mesma coisa, as mesmas piadas, histórias que você ouviu ontem, hoje com uma pitada a mais. As mesmas pessoas todos os dias. Uns entram apenas para uma cerveja e vão ficando, esperando a hora da janta. Outros, aposentados, bermuda e chinelo de dedo, saem de casa à tardinha, sem pressa, param para cumprimentar. Seu Américo, conhece? As mãos nas costas, dá a volta no quarteirão, pequena caminhada, ele diz. Para na padaria, ouvido nas novidades, conversa daqui, dali, depois desce a rua apressado, medo de perder a resenha do futebol.

Ô Américo – grita de casa a mulher, a cabeça por cima da grade – Pro bar de novo! Um aperitivo apenas, para abrir o apetite, responde o aposentado, as mãos nas costas, passando rápido em frente à casa.

Ariadne olhou para o retrato amarelado e empoeirado de uma criança morena, de olhos negros, pendurado na parede. Para abrir o apetite, você sabe.

Eu ficava do lado de dentro do portão, esperando. O prédio era bem em frente ao bar, os amigos do pai enfiavam a mão pela grade, mexiam no meu cabelo e depois atravessavam a rua correndo.

Quando o pai entrava no pátio, me levantava acima da cabeça como se fosse me jogar nas nuvens. Seus braços desciam lentamente, ele me acomodava no peito, a cabeça em seu ombro, as mãos acariciando minha nuca. No elevador, o pai segurava minha mão enquanto os andares passavam, cinco, seis, dez, eu pensava, vamos chegar nas nuvens, a mão forte e segura do pai me prendendo.

É uma história tão comum, como a história de toda gente. Filha esperando ansiosa pelo pai… até uma noite. Certa noite ele demorou, nunca mais saía do bar. Fiquei olhando pela grade o movimento do outro lado da rua, pessoas entrando, saindo, uma mulher chegou na porta do bar e gritou Ô Américo.  Vi de longe o vulto do pai com taco de sinuca na mão, alegre, conversando muito. Ele demorava tanto. A mãe desceu, avisou que era tarde, hora de dormir. Você tem filha? A menina do retrato? É tão bonita.

Naquela noite, o pai entrou silencioso na sala, eu via TV. Mexeu em meus cabelos, fez gesto de me erguer, respirou fundo, tentou novamente, as pernas bambearam, desistiu sem graça, menina crescida, desapareceu rapidamente no banheiro.

Poucos anos depois, ele se aposentou. Fez planos. Viajar para a Europa, pescar no Pantanal, mas o dinheiro não dava. Minha mãe gritava, gritava, mas para tomar cachaça e jogar sinuca com os amigos você tem.  Você gosta de viajar?… sei, sei, Guarapari, conheço muito, quem não conhece…. Minha mãe foi entristecendo pelos cantos, envelhecendo, acabava o jantar e assistia a novela das sete, das oito. Às vezes, eu ficava até mais tarde na universidade, quando chegava, um silêncio na casa, a porta do quarto trancada, ela dormia, sozinha como em todas as noites.

O interfone tocou tarde da noite. A mãe esperou na porta do elevador. Dois amigos chegaram com o pai apoiado em seus ombros. Bebeu um pouco além da conta, uma chuveirada e tá bom de novo. O pai ficou estendido no sofá, a mãe se trancou no quarto. De madrugada, acordei e o pai ainda dormia. O ronco forte que hoje conheço muito bem, ronco de bebida, assim como o cheiro que cola no travesseiro, nos lençóis, em mim, como cada gota de suor a me lembrar desta companheira.

Os olhos de Ariadne percorreram novamente o ambiente já quase vazio, empregados colocando as cadeiras em cima das mesas, a faxineira passando pano, limpando a umidade que copos e garrafas deixam. No outro dia de manhã, as malas dele estavam prontas. A mãe arrumou cuidadosamente cada peça de roupa, cada meia, antes dele sair, voltou correndo, pegou o porta retrato com minha foto de criança, entregou a ele com um pedido: cuidado para não quebrar.

O pai foi morar de favor com a irmã, fiquei com a mãe. Às vezes, ele passava em casa, conversávamos um pouco, me perguntava dos estudos, os olhos vermelhos olhando para o piso. No seu último dia de vida, eu estava de plantão no hospital. Médica residente, recém-formada. Passei no seu quarto. Era domingo de manhã, ele assistia na TV à corrida de fórmula 1, esporte do qual tanto gostava. Os olhos fundos, ele ainda não completara 60 anos. Como estava velho. Ele tentou alisar meus cabelos, sua mão tremia, tremia tanto, mal conseguiu levantá-la. Virou-se de lado, pediu para desligar a televisão.

Você quer outro uísque? Perguntou o barman. Ariadne olhou para a garrafa à sua frente. Um estrondo ecoou dentro do bar, trovoada forte anunciando tempestade na madrugada de verão. Com a manga da blusa, ela tentou enxugar os círculos molhados em cima do balcão. As nuvens estão pesadas. Ela empurrou ligeiramente o copo em direção à garrafa.

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