Cristina caminhou na minha direção com passos arrastados. Pensei que não existia mais essa história de luto, de se guardar em vestes negras enquanto a recordação nos vai consumindo por dentro. Mas elas foram tão amigas, tão próximas, proximidade feita de longas conversas ao telefone, cartas nos momentos de distância, refúgio na casa da outra em noites de angústia. Maria e Cristina. Podia ser um nome composto, Maria Cristina, nem assim seriam tão ligadas como o foram desde o momento em que se conheceram na faculdade de letras.
Trocamos algumas confidências a respeito de Maria, sempre interrompidos por alguém que se aproximava, “meus sentimentos”, como se Cristina fosse ali o parente mais próximo. Consideravam-me apenas para um ligeiro aperto de mão, às vezes um leve aceno de cabeça. “É o escritor, amigo de infância” – ouvi uma mulher dizer para o marido enquanto se afastavam.
Lamentei, como é comum nesses momentos, a ausência de anos repetidos sem trocar uma única palavra com Maria. Vi Maria pela última vez uns três anos atrás, no supermercado. Fiquei olhando para ela, indeciso em me aproximar. Às vezes me sinto estranho com pessoas tão amigas, de histórias comuns que o tempo vai deixando nas prateleiras. Mas ela se aproximou, um longo sorriso no rosto. Ficou a relembrar nossa adolescência, acabei entusiasmado por aquelas risadas e ficamos ali, entre latas de Pomarola, dizendo de brincadeiras ingênuas de rua, da juventude em cinemas e bares, quase falei de desejos não consumados. De repente, Maria se fez séria, baixou os olhos por alguns segundos e voltou a levantá-los repentinamente, como se fosse despejar uma frase de pronto no meu rosto. Suspirou desconcertada e nos despedimos.
Perdemos contato. Às vezes, a mãe me dava notícias: “Maria se separou do segundo marido, diz que tinha um amante, Seu Raimundo nem põe o pé na porta da rua, de vergonha.” Seu Raimundo era o pai, sentado ao lado do caixão com os olhos presos em nada.
– Ela deixou algo para você. – Cristina retirou da bolsa preta um pequeno embrulho. – Quando a doença se agravou, ela pediu que entregasse a você. “Espero que ele ainda se lembre”, ela me disse.
Afastei-me até o jardim central dos velórios. Era um pequeno caderno de anotações, de capa preta. Media talvez 15 cm de altura por 10 de largura e tinha umas trinta páginas: finas, delicadas, um tom de antiguidade na cor ligeiramente amarela. Gravado em baixo relevo, na contra-capa, quase imperceptível, a palavra Moleskine. Lembrei-me daquele fim de tarde.
Os pais de Maria haviam acabado de se mudar para a minha rua. A mãe me levou a uma visita de boas-vindas. A casa ainda toda desarrumada, caixas de papelão espalhadas pela sala. As mães saíram para o quintal, conversando sobre plantas. Maria, quatorze anos, olhos vivazes que usei em tantas de minhas personagens, estava sentada à mesa. Sem saber direito o que fazer, eu olhava as caixas e caixas de papelão.
– Vem aqui. – ela chamou. Cheguei perto, ela acabava de fechar um pequeno caderno de anotações preto.
– O que é isso? – perguntei.
– Meu diário.
– Mas é muito pequeno para um diário.
– Eu sei. Acabei de escrever algo sobre você.
– Deixa eu ver.
– Seu bobo, nunca peça a alguém para ver o seu diário… Um dia, quem sabe.
Abri o Moleskine. As páginas estavam todas em branco, à exceção da primeira. Apenas uma frase com letras de menina, desenhadas, com pequenos floreios nas iniciais.
8 de março de 1977.
Hoje conheci um menino tímido e bonito. Pela primeira vez, fiquei com vontade de beijar…