Tortura e clonagem na Enterprise

Enterprise é a quinta série de televisão baseada em Jornada nas Estrelas (Star Trek,1966/1968) criada por Gene Roddenberry. A trama da terceira temporada é baseada na procura, pela nave estelar Enterprise, da poderosa arma que está sendo construída pelos Xindis. O objetivo da arma é destruir o planeta Terra com um único disparo.

No segundo episódio, o Capitão Jonathan Archer (Scott Bakula) captura um Xindi e como não consegue as informações de que precisa para localizar o local em que a arma está sendo construída, decide apelar para meios mais convincentes. O prisioneiro é colocado em uma câmera de descompressão e o próprio Capitão, sob o olhar atônito de parte da tripulação, aumenta gradativamente o nível de ar dentro da câmera, torturando o prisioneiro até conseguir a informação. O pretexto é: “preciso dessa informação para salvar a Terra da destruição total”.

Na franquia Star Trek, Capitães e suas tripulações seguem uma norma: o respeito à vida inteligente. Exploradores espaciais, e não conquistadores, eles são regidos pela Primeira Diretriz: eles não podem interferir no modo de vida e na cultura dos mundos que exploram. Devem sacrificar sua própria vida, se for preciso, em respeito à essa lei.

No episódio Relatório de Danos, o Capitão Jonathan Archer volta a se defrontar com a ética. A Enterprise está seriamente danificada após uma batalha estelar. Os tripulantes precisam comparecer a um encontro em três dias para tentar parar a construção da arma mortal e encontram uma nave pacífica no caminho. Os Illyrianos têm a peça, reator de dobra, de que a Enterprise precisa para chegar a tempo ao encontro, mas se recusam a cedê-la. A decisão do Capitão Archer: abordar a nave “pacífica” dos Illyrianos e roubar a peça, deixando-os à deriva no espaço. Sem o reator de dobra, eles gastariam três anos para chegar em seu planeta natal e podem não sobreviver. Para compensar o crime, o Capitão da Enterprise deixa com eles suprimentos necessários para os três anos de viagem. Os tripulantes da Enterprise, liderados pessoalmente pelo capitão, se transformam em piratas do espaço.

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O tubarão de borracha

Pior que isso, o tubarão era ridículo. Nas palavras de Cohen: “Ele parecia um troço de borracha, completamente falso”. Tomou-se a decisão de sumir com o tubarão – na verdade, cortá-lo do filme, na montagem, adiando a primeira aparição do tubarão até o terceiro ato. Segundo Cohen, a ideia foi de Fields. “Verna foi a pessoa-chave em tudo o que aconteceu na finalização.” Ele diz que Spielberg ia tentar consertar o fracasso dos tubarões mecânicos usando cenas extraídas de documentários, intercalando-as com o material do filme. Mas “ela começou a perceber que aquilo que se imagina é pior do que o que se vê”. Cohen continua: “Ela meteu a tesoura no filme, arrancou tudo o que tinha tubarão e deixou só o resultado, as reações. Era muito mais elétrico.” Mas depois Spielberg alegou que já na filmagem ele percebera que precisaria fazer isso. “Os efeitos especiais não funcionavam, então eu tinha que pensar rápido e fazer um filme que não dependia de efeitos para contar a história”, ele diz. “Joguei fora a maior parte dos meus storyboards e apenas sugeri o tubarão.” Gottlieb concorda. “A decisão foi coletiva, com Spielberg na liderança. No início, um dos nossos modelos era O Monstro do Ártico, um grande filme de horror no qual você só vê o monstro no último rolo. Pensamos: ‘Vamos fazer isso’”.

O parágrafo acima, extraído do livro Como a geração sexo-drogas-e-rock’n’roll salvou Hollywood, de Peter Biskind, é exemplo das polêmicas que cercam a história de grandes sucessos do cinema a respeito da autoria. Um dos motivos do sucesso de Tubarão (Jaws,EUA, 1975) é a famosa música-tema de John Williams que anuncia a aparição do tubarão, criando um suspense estarrecedor. Na sequência final do filme, em algumas cenas do ataque ao barco, o tubarão aparece repentinamente, sem a música, quebrando a premissa já arraigada no espectador. O susto é inevitável.

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Cinema: arte ou comunicação

A conclusão de Jacques Aumont, no final do livro As teorias dos cineastas, é uma dúvida:

“Resta-me fazer uma confissão: não tenho, afinal, muita certeza de que o cinema seja uma arte. Ele se preocupou demais em provar que ia se tornar uma arte, e talvez tenha sido arte em certas ocasiões.”

Quando penso em filmes como Não amarás (Krótki film o milosci, Polônia, 1988), de Krzysztof Kieslowski, fico com a certeza que o cinema é uma arte. Não Amarás exemplifica o que considero essencial para definir arte no cinema. Através da linguagem do cinema, o artista, no caso o diretor do filme, expressa  o que tem de mais íntimo, poético e bonito. Ao mesmo tempo, a expressão do cineasta passa por uma leitura também íntima, poética e bonita do espectador. Cinema e espectador se misturam em um jogo de narrativas, emoções, compartilhamento. Conversam através de uma linguagem própria. Após uma sessão de Não Amarás tenho sempre a certeza que participei de experiência poética e artística.

É claro que o cinema, como qualquer outro produto cultural, sofre com a banalização da arte. Nas palavras de Aumont, “A arte se tornou uma coisa comum, porque todos são artistas, pelo menos potencialmente, e que qualquer prática reivindica para si (por uma preocupação afinal econômica) um pertencer à arte.”

Nem todo filme é cinema, como nem todo livro é literatura. Tenho especial predileção por filmes de ação, mas não posso considerar Duro de matar (Die hard, EUA, 1988) como arte. E olha que estou falando de um dos meus filmes preferidos do gênero, sabendo ainda que Duro de matar é considerado pela crítica como filme que mudou os rumos do cinema de ação.

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Queima de livros

A trama de Fahrenheit 451 (França, 1966), de François Truffaut, se passa em um futuro indefinido. Um regime totalitário proibiu os livros, o leitor que ousa desafiar a lei é preso e reeducado. O argumento do governo é que livros incentivam a fantasia, sonhos, romances, tornando os cidadãos infelizes pois almejam coisas que não podem alcançar. Algumas pessoas insistem em manter bibliotecas clandestinas. Quando descobertas, os bombeiros são acionados, invadem as casas e queimam todos os livros. Daí o título do filme: fahrenheit 451 é a temperatura de queima do papel. Montag, um bombeiro, guarda alguns livros para ler escondido. Ele começa a questionar esse estado e tem acesso a uma sociedade secreta, cujo objetivo é preservar a memória da literatura.

O filme é baseado no romance homônimo de Ray Bradbury. O enredo enfoca dois grandes inimigos dos livros: o fogo e o homem. O livro A longa viagem da biblioteca dos reis, de Lilia Moritz Schwarcz, narra o terremoto que assolou Lisboa, em 1755. A Biblioteca Real de Portugal, que contava com cerca de 70 mil livros, foi praticamente destruída pelo terremoto.

“Mas o fogo teimou em ser democrático e destruiu a todos e a tudo: diante do papel, as chamas foram implacáveis, reduzindo os documentos a cinza e pó. Depois do terremoto, Portugal acordou em luto por suas gentes, em pranto por suas moradas e monumentos – e com certeza menos culto: foram-se os livros e documentos e ficaram apenas as lembranças desse catálogo maravilhoso, dessa biblioteca exímia em classificações e nas lógicas que opunham de forma cartesiana títulos, temas e formatos.”

Nesse caso, o inimigo implacável é a natureza. O outro inimigo, o homem, também se serve do fogo para destruir. O nome da rosa (1980), de Umberto Eco, é uma história de detetives em homenagem a Sherlock Holmes, mas o tema central são livros proibidos na Idade Média. Em um mosteiro, os monges guardam os livros em uma biblioteca labiríntica. Misteriosos assassinatos acontecem ao redor de um determinado livro. No final, a imensa biblioteca é consumida pelo fogo enquanto hereges são queimados do lado de fora do mosteiro pela Inquisição. A igreja, sentindo-se ameaçada, queima livros e homens.

Volto a um trecho de A longa viagem da biblioteca dos reis.

“A história mostra como essas livrarias foram e continuam sendo destruídas, seja por motivos naturais ou por conta da razão instável dos homens. E, cada vez que uma caía, tombava com ela uma parte da civilização. Foi assim com Alexandria, que durou apenas um século, e com ela – com seus 700 mil volumes – desapareceu parte do conhecimento disponível sobre a Grécia. Não por acaso os ingleses queimaram a Biblioteca do Congresso em 1814, e um novo acervo cultural teve de ser construído. Foi assim quando Monte Cassino foi bombardeada, durante a Segunda Guerra Mundial, e perdeu-se boa parte do conhecimento sobre a Europa Medieval. E, não faz muito tempo, a destruição da Biblioteca Nacional do Camboja, pelo Khmer Vermelho, levou consigo o maior estoque de informações sobre a civilização cambojana. Por sinal, esse era o objetivo de seus algozes, que pretendiam reduzir o passado a zero e recomeçar do nada: criar uma memória; inventar de novo uma mesma nação. Não por acaso destruíram 80% dos livros e mataram 57 dos seus sessenta bibliotecários. Como se vê, a história das bibliotecas é antiga e feita de destruições, mais ou menos intencionais. Mas a repetição pede atenção e a insistência em queimar revela o objetivo de liquidar memórias e de tudo recomeçar.”

No filme de Truffaut, os personagens terminam recitando uns aos outros trechos de seus livros favoritos. A forma que encontraram de preservar a memória que deveria estar nos livros.

“Livros guardam memórias e encantamentos, e se travestem. Perturbam e excitam a fantasia, e às vezes irmanam o sonho com ação. Por isso trazem tanto medo e pedem reação.” – Lilia Moritz Schwarcz.

Os roteiristas de Cidadão Kane

Em 1971, a crítica de cinema Pauline Kael escreveu ensaio sobre a concepção do roteiro do filme Cidadão Kane (Citizen Kane, EUA, 1941), acirrando uma polêmica: a verdadeira autoria do roteiro do filme. A ficha técnica credita o roteiro a Herman J. Mankiewicz e Orson Welles, nessa ordem. A direção, todos sabem, é de Orson Welles.

Pauline Kael defende que o argumento e o roteiro são de autoria de Herman J. Mankiewicz. Orson Welles teria apenas sugerido, por telefone ou carta, pequenas mudanças. “Orson Welles não estava por perto quando Cidadão Kane foi escrito, no início de 1940”.

A secretária de Mankiewicz que acompanhou o trabalho do autor do “primeiro ao último parágrafo… diz que Welles não escreveu (nem ditou) uma linha do roteiro de Cidadão Kane”. Era comum, nessa época, produtores e diretores assinarem argumentos e roteiros, juntamente com o escritor do filme. Isso se devia às constantes alterações que sugeriam, à liberdade que o diretor sempre teve de improvisar durante as filmagens e à prática do produtor de determinar cortes ou refilmagens de sequências inteiras. Acabavam se sentindo também donos da ideia.

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Telas enfumaçadas

Minha mãe tinha uma história. Conheceu meu pai em uma noite de chuva. Ele estava debaixo da marquise, de chapéu, sobretudo e cigarro nos lábios. “Parecia um galã de cinema”, comenta a mãe. Ela se apaixonou por meu pai e começou a fumar.

Humphrey Bogart é talvez o ator mais associado ao cigarro na história do cinema. Bogart ficou famoso interpretando gangstêres, bandidos machões e românticos que nunca deixavam de lado o revólver e o cigarro.  Sua primeira cena em Casablanca (1943) é famosa: plano fechado na mão assinando uma espécie de promissória do Rick’s Café Américain, corta para a mão batendo o cigarro no cinzeiro, câmera acompanha a mão subindo com o cigarro até os lábios, close no rosto de Bogart aspirando e soltando a longa baforada. O ator difundiu até um hábito de acender cigarros no filme O Falcão Maltês (1941). Sobre a sua caracterização do detetive Sam Spade, o escritor Ruy Castro comenta:

“Deu a Spade tiques que ele não tinha, como o de passar a unha do polegar sobre a cicatriz do lábio superior ou de puxar o lóbulo da orelha direita, para a plateia entender que ele estava pensando – tiques de Humphrey Bogart. Deu a Spade seu jeito de andar (meio inclinado para o lado, com a mão esquerda no bolso e o braço direito em L, aderente ao corpo), de acender o cigarro (com as duas mãos em concha, protegendo a chama do fósforo)…”.

Do lado feminino, o ícone do cigarro é Rita Hayworth em Gilda (1946). Sua imagem de vestido longo preto e cigarro nas mãos, enfumaçada, correu o mundo e fez muita gente suspirar.

“De 1946 para cá, todas as vezes em que Gilda foi exibido em cinema ou TV, legiões de mulheres, ao fim do filme, juraram não descansar enquanto não se parecessem com Gilda. (…) E não se tratava apenas de imitar o seu jeito quase imoral de jogar o cabelo, de transformar inocentes saboneteiras numa tentação erótica ou de fumar como se cada lenta baforada contivesse um secreto significado.” – Ruy Castro.

Não é difícil imaginar a quantidade de dinheiro despendida pela indústria do tabaco para patrocinar personagens tão sedutores no cinema. Milhões de jovens no mundo inteiro deixavam-se levar por esse fascínio e acabavam com um cigarro nas mãos.

Meu pai era cinéfilo e começou a fumar ainda adolescente. Uma das imagens que guardo da minha infância é do pai sentado no sofá da sala diante da TV, soltando calmas baforadas. Uma noite, aos quarenta e poucos anos, tirou o toco de cigarro dos lábios, olhou fixamente para o pedaço de tabaco e disse: “É o último cigarro da minha vida”. Nunca mais colocou um cigarro na boca. Outro vício, o cinema, conservou a vida inteira.

Referências:

Saudades do século 20. Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1994

Um filme é para sempre. 60 artigos sobre cinema. Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Realismo e poesia no cinema italiano

As temáticas do neo-realismo italiano têm vertentes. A trilogia da guerra de Roberto Rossellini aproxima-se do documentário, mostrando a realidade do conflito,  já que o diretor utilizou cenas reais captadas durante a segunda guerra mundial: Roma, cidade aberta (1945), Paisà (1946) e Alemanha ano zero (1947). Outros diretores enveredaram pelo drama social. Ladrões de bicicleta (1948) e Umberto D (1952), de Vittorio De Sica são os exemplos mais concretos. Já Luchino Visconti, que deu origem a este movimento com Obsessão (1942), assumiu o melodrama em seus filmes da fase neo-realista.

Luchino Visconti – um diretor de outro mundo, de Claudio M. Valentinetti, tem uma estrutura interessante: cada capítulo analisa uma fase do diretor, envolvendo suas incursões pelo teatro, ópera e cinema. E termina sempre com depoimentos de Visconti. Em alguns trechos, Visconti fala sobre o neo-realismo:

“O neo-realismo, como experiência e como poética, vale ainda hoje. O importante é se pôr naquela mesma atitude em que nos púnhamos então, mas com relação, repito, aos casos e aos problemas habituais. Volta-se sempre aqui a falar de problemas. Parece uma banalidade, mas não o é, porque falar de problemas ainda apavora muitas pessoas. De qualquer maneira, essa é a única inspiração do neo-realismo. Na realidade eu falo mais de realismo do que de neo-realismo. Nós precisamos encarar com uma atitude moral os acontecimentos, a vida: com uma atitude, afinal, que nos permita ver com olhar límpido, crítico, a sociedade como ela é hoje, e contar fatos que dessa sociedade fazem parte. Neo-realismo foi uma palavra inventada naquele momento, porque saíamos daquele cinema que sabemos, e precisávamos de novidades. Mas enfrentamos o tema que nos era permitido enfrentar daquele ângulo visual que foi sempre típico de um artista realista. Nosso realismo foi principalmente uma reação ao naturalismo, ao ‘verismo’, que nos chegava da França, e que tínhamos parcialmente aceito. Agora nós, através de experiências humanas e experiências sociais, como a guerra, a Resistência, de um lado nos soltamos daquelas escórias, do outro nos encontramos quase involuntariamente olhando os fatos com aquela atitude moral que dizia, que nos permitiu fotografá-los com verdade absoluta. E verdade não quer dizer ‘verismo’.”

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Os musicais, a crítica e o público jovem

Amigo me diz que não suporta ver pessoas cantando e dançando em cena quando deveriam conversar ou namorar. Especialistas apontam que esse é um dos motivos da decadência do musical: as características do gênero, cantar e dançar, não agradam o público de cinema moderno, principalmente plateias jovens.

Meu pai amava musicais. Fred Astaire era dos seus ídolos no cinema. Na infância, lembro-me de vê-lo em festas de família tentando imitar passos do mestre. Adolescente, tentei também reproduzir (vergonhosamente) números de John Travolta em Os embalos de sábado à noite (1977).

O escritor Ruy Castro, em Cantando e dançando à saída do cinema – artigo publicado no livro Um filme é para sempre. 60 artigos sobre cinemacomenta o gênero que foi o preferido do público na era de ouro de Hollywood.

“O mesmo se aplicava às canções que, de ‘repente’, os atores começavam a cantar. Só que não era de repente. Os musicais, e não apenas os da MGM, obedeciam a toda uma engenharia em que o roteiro era escrito em função das canções e das sequências de dança. O diálogo anterior a cada número era uma preparação para que a letra da canção se encaixasse com lógica e, como se dizia em Hollywood, fizesse a ação ‘avançar’ (donde qualquer canção ou dança que ‘atrasasse’ essa ação era impiedosamente cortada). Havia uma sabedoria no roteiro ao intercalar canções e danças românticas ou mais swingadas, com o astro em solo ou com a parceira ou em grupo. Nada era deixado ao acaso.”

O autor escreve sobre o tempo em que grandes estúdios de cinema investiam fortunas em musicais. Sobre artistas que fizeram história no gênero. Vincente Minnelli, Stanley Donen, George Sidney, Esther Williams, Robert Wise, Gene Kelly, Fred Astaire, Gingers Rogers, Cyd Charisse, Judy Garland, Frank Sinatra, Elvis Presley, Bing Crosby. Diretores, atores, músicos que os jovens ainda não devem ter assistido com o deslumbramento inevitável. Ruy Castro espinafra a atual crítica cinematográfica.

“E por que, num musical, todo mundo dança ou canta ‘tão bem’? De novo envergonhado por ser obrigado a declarar o óbvio, repito: porque se trata de um filme musical. Nos filmes de ação, todo mundo em cena é mestre em tiro, caratê ou explosivos. Nos antigos westerns, todo mundo sabia andar a cavalo. Nos filmes de Spike Lee, todo mundo sabe dizer fuck e motherfucker. Cada gênero com a sua especialidade, qual é o problema? E, se esse ou aquele crítico não gosta de musicais e prefere os filmes de perseguições em velocidade, por que não se especializa neles, já que a crítica, com exceções, se tornou uma questão de gosto?”

O ataque de Ruy Castro chega ao público jovem.

“Aos ouvidos de muitos espectadores jovens, realmente parece estranho que um homem ou uma mulher se exprima cantando. Pelo tipo de discos que eles devem escutar, é compreensível. Pode-se imaginar alguém dizendo alguma coisa ao som de funk, rap, dance, house, techno ou qualquer outra pancadaria em voga?”

Acredito que um jovem com mínimo de sensibilidade vai ter a sensação de poder sair cantando e dançando em noite de chuva depois de assistir à famosa sequência de Gene Kelly em Cantando na Chuva (1952)Se o jovem estiver apaixonando, vai sair cantando e dançando de verdade pela rua, depois de beijar a namorada na porta de casa.

Referência: Um filme é para sempre. 60 artigos sobre cinema. Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

A restauração de um clássico

A minha dissertação no mestrado de cinema tratou dos cortes impostos pelos produtores nos filmes. Escrevi sobre filmes que tiveram finais modificados após serem submetidos a sessões de pré-testes. Assunto inesgotável, basta ver em alguns bons extras de DVD. A indústria do DVD trouxe duas vantagens ao cinema: a restauração de filmes antigos, alguns praticamente deteriorados, e a inclusão de depoimentos, entrevistas, comentários – histórias que ajudam cinéfilos a conhecer mais sobre cinema.

Ludwig (Itália/Alemanha/França, 1972), de Luchino Visconti, sofreu com a prática imposta por produtores de cortar o filme objetivando aceitação comercial. Após a montagem final, Visconti entregou Ludwig aos produtores com cerca de 4h10 de duração. Uma história grandiosa, passando pelos 25 anos de reinado do Rei Ludwig da Baviera.

O Rei Ludwig ficou famoso pela excentricidade, alguns classificaram de loucura. O rei foi um mecenas das artes, financiou grandes obras do compositor alemão Richard Wagner, chegando a construir um teatro especialmente para o músico. Era um soberano solitário, em conflito com sua sexualidade, cena do filme mostra Ludwig (Helmut Berger) fascinado e perturbado ao ver um de seus serviçais nadando nu no lago. Pouco depois, ele demite o empregado sem explicações e pede a mão da princesa Sophie, da Áustria, em casamento (o noivado foi rompido mais tarde e o rei nunca se casou).

Ludwig se afastou progressivamente do governo de seu reino para se dedicar a obras suntuosas, construindo grandes castelos na Baviera, dos mais belos da Europa, imponentes projetos arquitetônicos. Devido a essas excentricidades, Ludwig ficou conhecido como o “rei dos contos de fadas”, ou “rei lunar”. Era adorado por seu povo.

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O interior da nave

Contatos Imediatos do Terceiro Grau (Close Encounters of the Third Kind, EUA, 1977), de Steven Spielberg, é um dos filmes de maior bilheteria da história do cinema. Com enredo otimista, o filme é repleto de belos efeitos visuais, principalmente a seqüência final, quando a nave-mãe aparece. A seqüência em que o filho de Gil é levado pelos alienígenas é outro momento alto do filme. Mãe e filho, sozinhos em casa, se deparam com objetos, brinquedos e eletrodomésticos que ganham vida dentro da casa. A criança está deslumbrada, a mãe, assustada, conceito que Spielberg desenvolveria com ternura em E.T: só o olhar da criança consegue se sensibilizar com os alienígenas.

Contatos imediatos inaugura no cinema a ideia de relançar filmes com cenas adicionais. Steven Spielberg comenta, na edição especial lançada em DVD, que tentou convencer a Columbia a “me deixar terminar o filme como eu queria. Mas eles tinham problemas financeiros em 1977 e precisavam do filme no natal. A empresa estava em jogo e eles contavam com aquele filme”. Spielberg terminou o filme, mas ficou insatisfeito com determinadas cenas.

O sucesso nas bilheterias motivou Spielberg a procurar a produtora, cerca de um ano e meio depois. “Pedi que me deixassem terminar o filme, remontar certas cenas e filmar mais algumas seqüências. Eles disseram: ‘Nós damos o dinheiro, um milhão e meio de dólares, mas mostre a nave-mãe por dentro’. Queriam um gancho para a campanha”. – explica o cineasta.

Steven Spielberg concordou. Refez e incluiu as seguintes  cenas: o cargueiro Cotopaxi, achado no deserto; Roy Neary (Richard Dreyfuss) está sentado na banheira de sua casa, completamente vestido, deixando a água do chuveiro cair sobre ele; a sombra de uma espaçonave encobre a caminhonete de Roy.

Por fim, atendendo à exigência da Columbia, ele filmou cenas adicionais, mostrando Roy Neary no interior da espaçonave.

Com as cenas acrescentadas e o novo final, Contatos Imediatos abriu para o espectador a possibilidade de assistir, cerca de três anos depois, a um novo filme. No entanto, no depoimento que gravou para a edição lançada em DVD, Steven Spielberg reconhece o erro. “Eu cedi à Columbia e mostrei Richard Dreyfuss dentro da nave-mãe, o que eu nunca deveria ter feito. O interior devia ser um mistério.” A relação de desapontamento de Spielberg com o filme vai ainda mais longe.

“Contatos Imediatos do Terceiro Grau é uma odisséia idealista e meiga sobre um homem que larga tudo para perseguir seus sonhos ou obsessões. Em 1997, eu jamais faria o filme como o fiz em 1977, pois agora tenho uma família que eu nunca abandonaria. Nunca os expulsaria para fazer uma montanha na sala de estar, muito menos entraria numa nave para nunca mais voltar. Esse é só um privilégio da juventude. Esse é um filme que me data no qual posso olhar para trás e ver como eu era há 20 anos e me comparar com o que sou agora.”

Steven Spielberg ajudou a definir a política dos estúdios com relação à indústria do entretenimento. A partir dos anos 80, com a revolução da indústria caseira de cinema (VHS, DVD, Blu-ray, streaming…) relançar filmes com cenas adicionais, novos finais, cenas excluídas, making-off , virou lugar comum. Em casa, o espectador tem em mãos, muitas vezes, um novo filme. No entanto, nada substitui o fascínio da primeira sessão no cinema, aquela sensação do olhar deslumbrado em naves espaciais colorindo o céu e a imaginação dos amantes da sétima arte.

REFERÊNCIA

Extras do DVD. Columbia Pictures.