Algum lugar do passado

Venha ver a vista do final de tarde. Os carros cruzam as ruas, alguns com faróis acesos, outros insistem na última luz do dia. Bando de pássaros voa em sincronia logo abaixo da janela.

Lembro-me de nossa vista do quarto de hotel. O calor daquelas tardes de abril nos deixava sonolentos, entregues ao prazer do ar condicionado, da cama despretensiosa, do roçar de pernas sem desejo. O cheiro gostoso do seu corpo recendendo a sol. Entregues à tarde, ao nada, à sensação de nos deixarmos. No final da tarde, sentados na varanda do quarto, o sol escondido atrás do hotel refletia uma luz morna nas águas do mar, a maré alta batendo no arrimo de concreto, quase ao alcance dos nossos pés. Nossos olhos entregues.

Os pássaros não voam mais. Devem estar no ninho. Existem três grandes árvores frondosas no lote vizinho. Decerto estão ali, penas encolhidas, asas protegendo o corpo como um abraço próprio, se preparando para a noite longa, incerta.

Você gosta de caminhar entre árvores no final da tarde. Entre pés de fruta. Entre roseiras. Os pés com vontade de pisar descalços na grama, mas receosos de pequenas picadas. Às vezes, você estica um pouco o pescoço, chega o nariz perto dos ramos da vegetação. Dama da noite. Tardes no sítio. O pai acorda da sesta. As mãos cruzadas nas costas, anda calmo pelo quintal, a vistoriar laranjas, mangas, flores de jabuticabeiras, folhas de alface na horta. Os cachorros andam ao lado, despencam em uma correria por nada. É hora de dar milho às galinhas. Ele conversa com elas, a cada uma um nome.

Depois, bem à tardinha, o sol se escondendo no morro, ele pega o equipamento de matar formigas. Vai caçar a praga que destrói folhas, flores, devorando num ritmo eterno o trabalho do dia. Você vai atrás, indica a entrada dos formigueiros. O pai coloca o tubo no buraco, bombeia formicida dentro. Mais à frente, outro buraco, mais outro, a noite derrama sua luz fraca. Os olhos do pai desistem da busca, já não enxergam. Talvez uma lanterna, você sugere. Vamos deixar para amanhã, tenho todo o tempo, as formigas também. Diz o pai e senta-se ao meu lado na varanda. A mãe já está sentada, esperando a novela das seis. Entre uma conversa e outra, entre um silêncio e outro, a noite chega com o misterioso som dos noturnos. A mãe repete a frase de todos os dias, é tão gostoso dormir com o barulho dos sapos, acordar com o galo cantando. Os olhos descansam em um ponto qualquer da escuridão.

Todos os carros já estão com faróis acesos. Não podem mais com a penumbra, com as sombras da noite que levam meus olhos para algum lugar do passado.

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