Música do passado

Marina chegou perto do meu ouvido.

– Feche os olhos. – ouvi passos se afastando,  ainda sentindo cheiro de cabelos molhados.

Há quantos anos não ouço esse som. O clique do toca-discos acionado, o braço levantando automaticamente, o LP girando no prato, o primeiro contato da agulha com o vinil, os ruídos da agulha deslizando no vazio até se encontrar com a primeira faixa de música, os acordes se misturando com o chiado no fundo, as caixas de som reverberando. Há quantos anos não ouço essa música.

O vento de junho denunciava um mês frio. Nessas noites, eu vestia calça e jaqueta  jeans tradicional sobre camiseta de malha, tênis da moda não muito caro, condizente com meu salário de datilógrafo (estamos nos lembrando de coisas que já não existem) e saía andando pela cidade a pé, entre um cinema e outro, entre uma pizzaria e outra, entre um bar e outro, entre coisas assim. Andar pela cidade em noites de inverno. Mãos nos bolsos, ombros caídos, a brisa fria no rosto, flertando com meninas acobertadas nas fachadas dos cinemas.

Poucos carros passavam em frente ao Cine Amazonas naquele domingo à noite. Pode se passar uma vida e vou me lembrar do glamour de tardes e noites na porta deste cinema, de olhares, de sensações de espera, “ela não vem” e quase na hora de começar a sessão a menina aparece do outro lado da rua. E ficamos nos olhando através dos carros que não a deixam atravessar.

Eram quase dez horas da noite, eu andava impaciente pela entrada para afastar o frio e o medo de entrar atrasado.

Carlos e Marina chegaram a tempo, calmos como sempre.

– Cadê Juliana? – ele perguntou assim que me viu.

– Ela não vem. Desistiu na última hora, a mãe encheu o saco, disse que isso não é hora de ir ao cinema. Você conhece. Vim sozinho, segurar um pouco de vela. – Marina sorriu daquele jeito que a tornava um encanto.

Marco e Juliana, Carlos e Marina. Cresceram na mesma rua, brincaram de esconde-esconde, estudaram juntos na escola do bairro, assistiram aos pequenos e grandes filmes deste tempo. Naturalmente, tudo acabou em romance.

Marina sentou-se entre mim e Carlos. Apagaram-se as luzes, ficou no ar o silêncio respeitoso de amantes do cinema. Silêncio interrompido pela canção de amor dos créditos iniciais.

A mesma música que escuto agora, mais de vinte anos depois, recostado no sofá, as cenas do filme passando pela minha mente, as lembranças daquele momento se misturando ao cheiro dos cabelos molhados de Marina, tentando e quase conseguindo sentir as mesmas sensações daquela noite no cinema.

No momento em que a canção do filme tomou conta da sala escura, Marina deixou seu braço roçar no meu, dividindo de propósito aquele estreito braço de cadeira de cinema que parece feito para provocar. Ela mexia o braço lentamente, sua pele na minha pele. Olhei de lado com temor, Marina estava com a cabeça deitada em Carlos, olhos fixos na tela. Ela passou os dedos suavemente pelo dorso da minha mão. Fechei a mão em seus dedos com certa violência, como uma recusa. Ou aceitação. A mão dela relaxou por alguns segundos, mas quando a música estava quase no clímax, Marina de súbito entrelaçou seus dedos entre os meus pelo tempo suficiente para me fazer esquecer.

No final do filme, quase uma hora da madrugada de segunda-feira, me despedi sem graça do casal de namorados. Um aperto de mão em Carlos, dois beijos no rosto de Marina, bem perto dos lábios, bem perto.

Vinte anos. Fazia tanto tempo que não via Marina, Carlos já se distanciara há muito. Tudo me vem agora com os cabelos molhados de Marina roçando em minha pele.

– Você se lembra? – ela me perguntou com seus lábios quase tocando nos meus, a música daquele filme antigo já nas últimas faixas.

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