Memórias do subsolo

Memórias do subsolo, novela publicada em 1864, é narrada em primeira pessoa por um anônimo. O personagem revela com ironia e desprezo a amargura em que vive. Dostoiévski usa o narrador para caracterizar a decadência de uma geração. Na introdução, o autor alerta:

“Tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários. Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, mas devem existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou. O que pretendi foi apresentar ao público, de modo mais evidente que o habitual, um dos caracteres de um tempo ainda recente. Trata-se de um dos representantes da geração que vive os seus dias derradeiros.”

Essa geração derradeira é representada por um homem sem esperanças a respeito do mundo e de si mesmo. Começa sua história apresentando-se: “Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado.”

Dostoiévski colocou na mente de seu personagem indagações perturbadoras. O narrador reflete:

“Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos seus amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e assim mesmo em segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio, e, em cada homem honesto, acumula-se um número bastante considerável de coisas no gênero. E acontece o seguinte: quanto mais honesto é o homem, mais coisas assim ele possui. Pelo menos, eu mesmo só recentemente me decidi a lembrar as minhas aventuras passadas, e, até hoje, sempre as contornei com alguma inquietação. Mas agora, que não apenas lembro, mas até mesmo resolvi anotar, agora quero justamente verificar: é possível ser absolutamente franco, pelo menos consigo mesmo, e não temer a verdade integral?”

Essa dúvida fecha o longo desabafo inicial do personagem, quando ele resolve contar a sua história. Uma história sobre personagens do subsolo (Érico Veríssimo fez incursão parecida em Noite). Talvez nem uma história, crueldades do mundo jogadas no papel. Narradas desse jeito profundo e simples que fazem de Dostoiévski porto-seguro na escolha de boa leitura.

“Agora está nevando, uma neve quase molhada, amarela, turva. Ontem nevou igualmente e dias atrás, também. Tenho a impressão de que foi justamente a propósito da neve molhada que lembrei esse episódio que não quer agora me deixar em paz. Pois bem, aí vai uma novela. Sobre a neve molhada.”

Duas narrativas fantásticas

Duas narrativas fantásticas, de Dostoiévski, reúne duas novelas do autor: A dócil e O sonho de um homem ridículo, publicadas em 1876 e 1877, respectivamente, no Diário de um escritor, revista redigida e editada pelo próprio autor. Como em outras narrativas de Dostoiévski, a morte é o tema central. Melhor dizendo, o suicídio.

Em A dócil, um homem de meia-idade está diante do caixão de sua esposa adolescente.

“…Pois enquanto ela ainda está aqui – tudo bem: me aproximo e olho a cada instante, só que amanhã vão levar embora e – como é que eu vou ficar sozinho? Ela agora está na sala sobre a mesa, juntaram duas mesas de jogo, e o caixão vai ser amanhã, branco, um gloss de Naples branco, e, aliás, nem se trata disso…”

A narrativa segue do momento em que se conheceram até a morte da esposa. O objetivo do narrador é expor ao leitor sua culpa diante do suicídio da jovem:

“Senhores, estou longe de ser um literato, e os senhores podem ver isso, mas não importa, vou contar assim como eu mesmo entendo. É aí que está todo o meu horror, eu entendo tudo!”

A narrativa de um homem ridículo segue o mesmo princípio. O narrador afirma logo no primeiro parágrafo o perfeito entendimento de sua situação:

“Eu sou um homem ridículo. Agora eles me chamam de louco. Isso seria uma promoção, se eu não continuasse sendo para eles tão ridículo quanto antes. Mas agora já nem me zango, agora todos eles são queridos para mim, e até quando riem de mim – aí é que são ainda mais queridos. Eu também riria junto – não de mim mesmo, mas por amá-los, se ao olhar para eles não ficasse tão triste. Triste porque eles não conhecem a verdade, e eu conheço a verdade. Ah, como é duro conhecer sozinho a verdade! Mas isso eles não vão entender. Não, não vão entender.”

A narrativa conta os passos do homem em uma noite.

“Porque essa estrelinha me trouxe uma idéia: eu tinha decidido me matar naquela noite. Fazia dois meses que isso já estava firmemente decidido, e, apesar de ser pobre, comprei um belo revólver e carreguei-o naquele mesmo dia.”

São duas narrativas escritas próximas da morte de Dostoiévski, em 1881. Refletem uma fase do autor na qual ele estava usando em sua literatura influências jornalísticas, buscando relatos do cotidiano – A dócil é inspirada em suicídios ocorridos em São Petersburgo. Talvez buscasse através de suas personagens o entendimento para um ato tão extremo. Talvez buscasse ele mesmo a verdade.

“O principal é – ame aos outros como a si mesmo, eis o principal, só isso, não é preciso nem mais nem menos: imediatamente você vai descobrir o modo de se acertar. E no entanto isso é só – uma velha verdade, repetida e lida um bilhão de vezes, e mesmo assim ela não pegou! ‘A consciência da vida é superior à vida, o conhecimento das leis da felicidade – é superior à felicidade” – é contra isso que é preciso lutar! E é o que vou fazer. Basta que todos queiram, e tudo se acerta agora mesmo.”

Correspondências Dostoiévski

P… abriu a porta da sala intempestivamente, mas não assustou redatores e diretores de arte sentados na sala contígua. Já estávamos acostumados a estes rompantes, resultados da insatisfação consigo mesmo que P… expressava quase diariamente. Acontecia no início da tarde, geralmente em dias de muito calor. Após horas isolado dentro da sala, ele abria a porta de sopetão, caminhava alguns segundos pelo departamento de criação, parava em frente à janela por mais alguns segundos, se voltava para um de nós e disparava:

– S… devia me mandar embora hoje mesmo. Não consigo escrever uma linha. Sou o mais completo idiota, não sei por que diabos trabalho com criação.

S… era o dono da agência de publicidade, P… o diretor de criação. Depois da explosão, ele se fechava na sala e só saía no início da noite, maleta na mão, olhar sereno, se despedindo de todos. Era a senha: no outro dia, bem cedinho, os mais criativos títulos, textos, roteiros, estariam na mesa de um dos diretores de arte para formatação.

A crise criativa que afeta o trabalho de quem lida no mundo das ideias é realidade desde quando o homem inventou de se expressar. Basta ligar o computador e ficar olhando indefinidamente para a tela em branco e você entende esse desespero. No caso do escritor russo Dostoiévski, a crise acontecia com folhas dispersas na mesa.

“Meu irmão, é tão triste viver sem esperança! Quando olho para adiante, tenho medo do futuro. Transporto-me para uma atmosfera fria como o Ártico, na qual nenhum raio de sol jamais penetrou. Por um longo tempo eu não tenho um instante de inspiração sequer. Sinto-me, assim, como o Prisioneiro de Chillon após a morte de seu irmão. A ave-do-paraíso da poesia nunca, nunca mais, irá me visitar novamente – nunca mais irá aquecer minha alma congelada. Você diz que sou reservado; mas todos os meus sonhos de antes me abandonaram e, naqueles arabescos dos quais um dia eu me encantei, todo o brilho desapareceu. Os pensamentos que costumavam acender minha alma e meu coração perderam o fulgor e a força; ou então meu coração está entorpecido, ou então… Tenho medo de terminar essa frase. Não vou admitir que todo o passado foi um sonho, um reluzente sonho dourado.”

O trecho é do livro Correspondências Dostoiévski, coletânea de cartas escritas pelo escritor a amigos e, principalmente, ao irmão. Dostoiévski escrevia diariamente pressionado por problemas financeiros. Ele passou grande parte da vida assolado por dívidas, credores ameaçando enviá-lo para a prisão. Diferente de outros autores de seu tempo – como Tolstói que era independente financeiramente e escrevia com vagar – Dostoiévski tirava o sustento de seus romances. O autor trabalhava por encomenda, publicando capítulo a capítulo em jornais e revistas, sujeito a rigorosos prazos de entrega. Recebia adiantamentos por livros que ainda não escrevera o que agravava sua obrigação diária de escrever.

Dostoiévski passou seis anos na prisão e esteve a um minuto de ser fuzilado. Realizou trabalhos forçados no Cazaquistão, sofria de epilepsia, era viciado em jogos de azar. Viveu anos em exílio na Europa, pulando de cidade em cidade, fugindo de seus credores. Perdeu uma filha, perdeu o irmão querido, mas nunca deixou de escrever, produzindo clássicos da literatura mundial, como Crime e castigo, Os irmãos Karamazov, Os demônios, Memórias do subsolo.

P…, o diretor de criação, achava que Dostoiévski cuidava pouco do texto. Era um dos embates literários que tínhamos, pois o autor é o meu favorito. A analogia que faço neste texto com o trabalho de redação publicitária apareceu devido a esse processo cotidiano de escrever, seja um romance ou um simples anúncio. Pena que hoje, a maioria dos redatores não tem a preocupação de se referenciar com a leitura de grandes escritores. O resultado é uma publicidade cada vez mais pobre em conceito e bons textos.

Um trecho final destas Correspondências, outra lição obrigatória para quem se aventura pelos caminhos da escrita, da publicação de ideias.

“De Pisarski, conheço apenas ‘O Fanfarrão’ e ‘O Rico Pretendente’ – nada mais. Gosto muito de seu trabalho. É inteligente, bem-humorado e quase ingênuo; é um mestre ao contar histórias. Uma coisa é lamentável: escreve rápido demais. Escreve muito rápido e em demasia. Um homem deve ter mais ambição, mais respeito por seu talento e ofício, e mais amor pela arte. Quando se é jovem, as ideias acumulam-se em nossa cabeça; mas não se deve capturar a cada uma delas enquanto bailam em nossa mente, e daí apressar-se para divulgá-la. Deve-se esperar pela síntese, pensar mais; aguardar até que os detalhes tenham se agrupado em torno de um núcleo, em uma ampla e definida imagem; nesse momento, nunca antes, deve-se então escrevê-la. Os personagens colossais, criados pelos autores colossais, em geral nascem do trabalho demorado e persistente. Mas as tentativas e rascunhos que levam àquela imagem não devem jamais ser divulgados.”

Gente pobre

Sinto certo fascínio por estas edições da Editora 34. Na parte superior da capa, todos os livros trazem uma gravura em preto e branco. Na parte inferior, a direção de arte simples, composta por uma tipologia delicada, deixa quase em suspenso esse nome que faz parte da minha formação como leitor: Fiódor Dostoiévski.

Gente pobre é o primeiro livro de Dostoiévski, publicado em 1846. “É provável que não haja outro caso, pelo menos na Rússia, de um escritor que da noite para o dia tenha saído da mais completa obscuridade para a glória antes mesmo de ter sua primeira obra publicada. Em 1845, aos 25 anos de idade e completamente desconhecido, Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski surge no círculo literário de Vissarion Bielínski, o principal crítico da época, trazendo consigo os manuscritos de seu primeiro romance, Gente pobre, prontos para vir à luz. O poeta russo Nikolai Niekrássov (1821-1878) e o escritor Dmitri Gregoróvitch (1822-1899), ao terminar sua leitura, em lágrimas, saíram anunciando que havia surgido um novo Gógol e predizendo um grande futuro ao então jovem escritor.” – Fátima Bianchi.

A estrutura do romance é simples: o funcionário público Makar Aleksievich troca correspondências com a jovem Varvara Alekseyevna. É o típico romance epistolar. Através das cartas, o leitor é aos poucos envolvido pelo drama das duas personagens às voltas com a pobreza que acometia grande parte da população russa daquele final de século. Em algumas cartas, Makar descreve à Varvara seu círculo social, composto por colegas de trabalho e pelos moradores da pensão em que vive. É um tipo de residência comum nos romances de Dostoiévski. Escreve Makar:

“Já lhe descrevi a disposição dos quartos; não há o que dizer, é verdade que é cômoda, mas dentro deles é meio abafado, isto é, não que cheirem mal, mas é como se fosse um ar, se é que posso me exprimir assim, meio podre, penetrante e adocicado. A primeira impressão é desfavorável, mas isso não quer dizer nada, basta ficar uns dois minutos dentro de casa que passa, e a gente nem percebe que passa completamente, porque parece que a gente mesmo fica cheirando mal, a roupa fica com cheiro, as mãos ficam com cheiro, tudo fica com cheiro – e a gente se acostuma.”

Conviver com a miséria e assistir com frieza às desgraças que caem sobre cada um parece ser a única solução para Makar e os moradores da pensão. Para Varvara, a esperança é um casamento ao qual ela busca com a resignação desta gente pobre. “Meu inestimável amigo Makar Alekseyevich! Tudo se cumpriu! Minha sorte está lançada, não sei qual, mas me submeto à vontade do Senhor.”

Creio que o fascínio que sinto pela literatura de Dostoiévski está nas personagens que o autor apresenta a cada livro. São sempre reveladores de um país que conserva o ar de tragédia cotidiana. Imagino a beleza enigmática de Moscou, da São Petersburgo de Noites brancas, através de histórias como as de Makar e Varvara, através da pena deste escritor que trabalhava sob a luz de velas, retratando um mundo obscuro.

Dostoiévski, o jogador

Um jogador, de Fiódor Dostoiévski, retrata com conhecimento o mundo subterrâneo dos cassinos. Conhecimento que o autor adquiriu através do vício compulsivo pelo jogo.

“A paixão pelo jogo foi sua segunda doença, possivelmente relacionada com a primeira, uma obsessão verdadeiramente anormal. A isso devemos o maravilhoso romance O jogador, que se passa numa estação de águas alemã, inverossimilmente e perversamente chamada Roletemburgo. Nesse romance, a psicologia mórbida e do demônio Sorte é exposta com incomparável veracidade.” – escreveu Thomas Mann sobre o vício de seu colega escritor.

Aleksei Ivanovich serve a um general russo. Jogador inveterado, calculista, passa dias e noites em volta da roleta sempre que tem dinheiro. Também em volta da roleta se encontram diversas nacionalidades, incluindo alemães, ingleses, franceses, poloneses. Figuras caricatas, vencidas diariamente pelo vício.

“Não há qualquer magnificência nessas reles salas, e o ouro não apenas se amontoa sobre as mesas, mas até mal existe ali. Naturalmente, vez por outra, no decorrer da estação, aparece, de repente, algum excêntrico, um inglês ou um asiático, ou um turco, por exemplo, como aconteceu este verão, e, de chofre, perde ou ganha uma quantia muito elevada; mas todos os demais apostam uns escassos florins, e, normalmente, há bem pouco dinheiro sobre a mesa. Depois que entrei na sala de jogo (a primeira vez na vida), fiquei por algum tempo sem me decidir a jogar. Além disso, eu era comprimido pela multidão. Mas, ainda que estivesse sozinho, penso que iria embora quanto antes e não começaria a jogar. Batucava-me o coração, confesso, e meu estado não era de sangue-frio; já sabia com certeza – há muito o decidira – que não sairia sem maiores novidades de Roletemburgo; algo além de radical e definitivo tinha que suceder indefectivelmente em meu destino. Era preciso, e assim seria. Por mais ridículo que fosse o fato de eu esperar tanto da roleta, tenho a impressão de ser ainda mais ridícula a opinião rotineira, por todos aceita, de que é estúpido e absurdo esperar algo do jogo. E por que há de o jogo ser pior do que qualquer outro meio de adquirir dinheiro, como, por exemplo, o comércio? É verdade que, em cem jogadores, ganha apenas um. Mas que tenho eu com isso?”

Estas reflexões de Aleksiéi o movem durante a narrativa, dividido entre o jogo e o amor por Polina, filha do general para quem trabalha. A vida de Aleksiéi acaba se confundindo com o jogo, em determinado momento nada mais importa, a não ser estar ao lado da roleta.

“Possuído de uma espécie de febre, empurrei todo aquele monte de dinheiro sobre o vermelho – e, de repente, voltei a mim! E uma única vez em toda aquela noite, enquanto durou o jogo, o frio do medo me perpassou o corpo e se refletiu num tremor de pernas e das mãos.”

É um relato cruel, carregado da percepção que Dostoiévski tinha de seu próprio vício e das pessoas que o cercavam. Um jogador reflete, como sempre, o profundo sentimento de ironia e decadência que o escritor russo infligia a suas personagens.