Pororoca

Para entender a força da linguagem cinematográfica em determinadas narrativas, basta se entregar ao longo plano sequência no parque, quando a filha do casal Tudor e Cristina desaparece. É uma espera angustiante para o espectador, acompanhar sem cortes uma bela manhã ensolarada no parque, onde crianças se divertem, pais relaxam com livros e conversas banais, sorvetes aliviam o calor das crianças e dos adultos. Angustiante, pois o espectador sabe o que vai acontecer com a pequena e doce Maria. 

A partir do desaparecimento da criança, a narrativa se concentra na luta diária dos pais para encontrar a filha. Ao mesmo tempo, o casal tem que enfrentar a degradação do relacionamento, motivada principalmente pelo sentimento de culpa.  Pororoca é um filme difícil de assistir, repleto de sequências que fazem o espectador entrar na tristeza e desespero do casal. A reviravolta na sequência final, claramente uma citação à Taxi Driver, de Martin Scorsese, é impactante, pode-se dizer aterradora ao expor os limites da insanidade. 

Pororoca (Romênia, 2017), de Constantin Popescu. Com Bogdan Dumitrache (Tudor Iunesco), Iulia Lumânare (Cristina), Constantin Dogioiu (Pricop). 

O evangelho segundo São Mateus

Pier Paolo Pasolini era declaradamente ateu. No entanto, isso não foi empecilho para que o diretor realizasse sua leitura da bíblia para reconstituir o martírio de Jesus Cristo.  “Não é difícil prever que este meu relato pode provocar reações interesseiras, ambíguas ou escandalizadas. Seja qual for a reação que receba, quero deixar claro que a história da Paixão que eu evoco indiretamente é para mim a maior que jamais houve, e os textos que a registram, os mais sublimes já escritos.” – Pier Paolo Pasolini. 

Pasolini retrata um Cristo vivendo em uma região desértica e miserável, cujos monólogos, diálogos e sermões são extraídos diretamente do texto do Evangelho. O filme se aproxima de uma das maiores influências do cinema do diretor: o neorrealismo italiano. O filme é gravado em locações, com um grupo de atores que faziam parte do círculo intelectual de Pasolini. O resultado é uma narrativa próxima à realidade vivida por Cristo e seus seguidores. “O Cristo de Pasolini, foge dos parâmetros de iconografia católica tradicional: barba curta e rala, rosto cheio, sobrancelhas unidas. Do mesmo modo, os atores que vivem os apóstolos poderiam ter saído de qualquer praça de Roma.” – Pedro Maciel Guimarães

Esse olhar realista, próximo do que poderia ter sido a vida naqueles tempos, coloca Jesus Cristo no lugar de um revolucionário que angariou seguidores em busca de justiça social e fraternidade entre os irmãos. Com a poesia bela e emocionante dos textos bíblicos sob o olhar também belo e poético de Pasolini. 

O evangelho segundo São Mateus (Il vangelo secondo Matteo, Itália, 1964), de Pier Paolo Pasolini. Com Enrique Irazoqui (Jesus Cristo), Margherita Caruso (Maria Jovem), Susanna Pasolini (Maria Adulta), Marcello Morante (José), Mario Socrate (João Batista), Otello Sestili (Judas). 

Referência: O evangelho segundo São Mateus – um filme inspirado na vida de Jesus Cristo. Cássio Starling Carlos, Pedro Maciel Guimarães, Reinaldo José Lopes. São Paulo: Folha de S. Paulo 2016. Coleção Folha Grandes Biografias no Cinema.