Elaine. Corpo miúdo, ainda adolescente saída da infância, pele clara, olhos castanhos em tom quase laranja, nariz afinado, seios despontando sob a camiseta de malha branca, cabelos negros cortados rente à orelha, deixando a descoberto o longo pescoço. Foi como a vi naquele domingo de manhã.
Dezenas de jovens se aglomeravam em pequenos bandos nos arredores do Cemitério da Saudade. Estudantes organizados para uma caminhada pela Serra do Curral. Alguns olhavam a montanha e sentavam-se desolados no meio-fio, imaginando a caminhada. Outros exibiam a disposição em roupas esportivas, marcas famosas estampadas em camisetas e bonés como a anunciar a supremacia da juventude que dava os primeiros passos rumo ao consumo desenfreado que acabou tomando conta das gerações seguintes.
Elaine chegou, cumprimentou adoradores e desafetos conquistados naqueles anos de colégio. Os adoradores, encantados por beijos no rosto e olhares prometidos. Os desafetos, se lembrando das recusas seguidas de cochichos nos ouvidos das amigas, sabe-se lá que desprezos revelando. Eu estava entre os adoradores, olhar se cruzando às vezes.
Foram perto de sete horas de caminhada, atravessando a Serra do Curral até a cidade de Nova Lima. Partimos em fila indiana do cemitério. “É necessário organização, solidariedade, disciplina e nada de aventuras arriscadas como sair da trilha, se embrenhar em matas, rios, se descuidar do companheiro da frente”, disse o professor, seguindo como guia, passo ritmado de quem conhece o caminho e, a julgar pelos longos cabelos amarrados em rabo de cavalo e pela barba chegando quase à barriga, também os descaminhos.
Chegamos ao primeiro topo. À frente, a vista revelava o vazio resultante da mineração: montanhas cortadas até a raiz, substituídas por um imenso vale de poeira e lama se misturando a lagos formados pelo lençol freático. A montanha terminada em dejetos. Descemos. À medida que cruzamos o vale, passamos por gigantescas máquinas cobertas de pó do minério. Escavadeiras, caminhões carregadores com pneus maiores do que quatro de nós empinados. Máquinas assustadoras a demonstrar o terror de que são capazes.
Elaine caminhava a meu lado, feição às vezes séria, outras vezes sorria a um ou outro gracejo dos amigos. Encobríamos o sentimento de destruição aparente com o humor da juventude reunida, certa de poder vencer até mesmo a tristeza do mundo acabado assim, tão à vista.
Após atravessar o vale deserto, começamos a subir a segunda montanha. A picada agora era mais íngreme, acidentada, trilha mal formada emoldurada por galhos, espinhos, em determinados pontos era preciso esperar cada um passar devagar, os meninos segurando galhos para segurança das meninas. Cheguei extenuado ao topo da montanha. Olhei para trás. O vale de poeira ganhava a dimensão alcançada pelo olhar. As máquinas, agora diminutas, pareciam insignificantes como miniaturas em uma maquete. À minha frente, a descida anunciava paisagem contrastante, coberta de mata, mal se via a trilha, mal podia se encontrar o caminho. Os primeiros da fila já alcançavam o vale embaixo.
Elaine deitou a cabeça em meu ombro, denúncia de cansaço e desalento. Descemos pela encosta. Molhei a boca com a água racionada do cantil, ofereci o resto a Elaine. Eu já pensava na possibilidade em um final seco de jornada, mas o guia conhecia aquelas trilhas. Saindo do meio da mata densa, nos deparamos com uma clareira cortada por um riacho de águas claras correndo entre pedras lisas.
Vários jovens já tomavam banho sem nem mesmo tirar os jeans, muitos deitados nas pedras, deixando a água deslizar pelo corpo. Elaine sentou-se na margem e tirou o tênis. Apertou com as mãos seus pequenos dedos doloridos, massageou o dorso e a sola dos pés, as mãos trabalhando ao mesmo tempo. Dobrou as pernas da calça até abaixo dos joelhos, colocou os pés na superfície rasa do riacho. Debruçou-se, a cabeça deitada sobre as pernas, as mãos brincando de represa. Meus olhos se prenderam naqueles pequenos pés, na insensata beleza da mulher descalça,.
Andamos por cerca de três horas. O caminho agora mais fácil, pequenas subidas e descidas até chegar a uma antiga estrada de terra. Entramos em Nova Lima por volta de duas horas da tarde. Elaine já caminhava cansada, as faces vermelhas de sol, procurando as sombras de marquises ou de muros altos. Os moradores da cidade aproveitavam o domingo. Gente olhava a rua da janela, homens nas calçadas dos bares, crianças corriam, uma turma jogava pelada de rua, velhas senhoras de sombrinha paravam para olhar a multidão de jovens sujos, cansados e sedentos descendo da montanha.
Paramos em uma praça da cidade. Aos poucos, os estudantes se dispersaram. Muitos já tinham encontro marcado com os pais para voltar de carro. Eu, Elaine e um grupo de amigos, planejamos voltar de ônibus, no final da tarde. Pensamos em andar pela cidade, mas o cansaço acabou nos deixando espalhados pelos bancos e gramas da praça. Sentei-me ao lado de Elaine, costas apoiadas na árvore. Não tínhamos mais o que conversar, se criou entre nós aquele sentimento de pessoas que passam o dia inteiro juntos e de repente se encontram sem mais nada para fazer. Ela deitou-se na grama, usando meu colo como travesseiro. Fechou os olhos e dormiu por quase uma hora. Fiquei olhando seu rosto, as mãos acariciando seus cabelos, ousando um toque suave no pescoço para vê-la estremecer no sono. Às vezes ela abria os olhos, sorria. Em todos esses momentos, adiei o gesto de levantar Elaine, apertá-la em meu peito, beijar seu rosto, encontrar seus lábios.
Deixei o tempo passar. E ainda hoje, tantos anos depois, guardo a sensação de impotência daquele dia diante das máquinas que avançam destruidoras criando o deserto. Diante de Elaine.