Tempestade

Chovia. Quando entrei no ônibus, o barulho na lataria insinuava chuva forte, típica pancada de verão. Da minha casa até o local de encontro com Cristiane, o ônibus gastaria cerca de 10 minutos. Domingo à tarde, o calor afugentava das ruas, o trânsito estava calmo, o ônibus vazio. A água escorrendo no vidro provocou imaginações de cinema: namorados correndo de mãos dadas na chuva, se escondendo em marquises, beijos molhados…

Acordei com um estrondo. As nuvens negras aumentavam na velocidade que só me lembro de ver naqueles efeitos visuais que aceleram as imagens. O dia escureceu, as luzes dos postes acenderam em plena três horas da tarde. A poucos metros do ponto em que eu deveria descer, pesada, assombrosa tempestade desabou.

Desci do ônibus, pesadas gotas de chuva batendo como pedras em meu rosto, em minhas costas. O vento mudava de sentido rapidamente. Consegui chegar até o abrigo de ônibus na avenida. Cristiane me esperaria no ponto de ônibus do outro lado.

A chuva dificultava a visão. A cortina de água cortava o ar quase na horizontal. Em alguns intervalos das rajadas, enxerguei um pequeno grupo de pessoas se escondendo das águas no abrigo do outro lado da avenida. Cris era inconfundível, mesmo à distância. Cabelos castanhos que chegavam quase até a cintura, faces brancas, olhos também castanhos, mas o que a distinguia mesmo naquela distância era a altura incomum em uma jovem daquela geração, cerca de 1,75.

O destino fazia das suas. A enxurrada formou um rio na avenida, impedindo qualquer tentativa de atravessá-la. Alguns carros pararam no meio, motores apagados, a água batendo na altura da porta. Meus pés já estavam submersos, mulheres gritavam no abrigo, uma criança de cerca de dois anos, no colo do pai, assistia a tudo deslumbrada.

Eu não podia ficar ali. Estudei a situação. Poucos metros acima havia um declive na avenida que terminava onde estávamos, lugar em que a água se juntava, formando uma lagoa, favorecida pelos bueiros insuficientes para o escoamento. No declive, o volume de água era grande, mas a enxurrada corria veloz. Talvez eu pudesse atravessar. Andei cerca de 100 metros e me aventurei. Atravessei com a água batendo nos joelho, ameaçado pela correnteza forte que poderia em um momento ou outro me jogar no meio das águas.

Cheguei do outro lado. Desci até o abrigo, as roupas pesadas, coladas ao meu corpo, os pés imersos na água.  Cris me recebeu com um grito de alívio, um abraço, seu rosto em meu peito encharcado.

– Seu maluco.

– Não podemos ficar aqui.

– O que vamos fazer? Essa chuva.

– Minha casa é perto daqui. Talvez a gente consiga pegar um táxi. A chuva está diminuindo.

Por sorte, o táxi parou ao primeiro sinal que fiz. A altura da água diminuíra um pouco, mesmo assim entramos com dificuldade. O carro andou cerca de trinta metros, patinando na chuva, até que ouvimos barulho de motor engasgando. As luzes do painel se apagaram. O motorista tentou virar a chave na ignição, ouvimos o arranque rateando, rateando…

– Não tem jeito.

– E se eu empurrar. Tem uma descida logo ali.

– Nessa chuva?

– Eu já estou molhado mesmo. – Cris fez menção de ajudar, mas fechei a porta rapidamente ao descer do carro, fazendo gesto pelo vidro de “fica aí”. A chuva voltou a bater forte nas minhas costas enquanto eu empurrava o carro lentamente, meus pés escorregando no asfalto molhado até que o carro chegou no início da descida. Um pequeno embalo e pude ver a fumaça saindo do cano de descarga, sinal que o motor funcionara.

Entrei no carro. Em ponto morto, o motorista pisava fundo no acelerador, o barulho do motor agredindo nossos ouvidos. O motorista engatou primeira, soltou a embreagem, o carro deu dois ou três solavancos e voltou a morrer. Cris me olhou com aqueles olhos de “e agora?”. Desci novamente do carro, empurrei com todas as forças para que ele pegasse embalo na descida. Assim que o motor voltou a funcionar, o motorista andou por mais alguns metros, tentando manter o ritmo do motor. Tive que correr atrás do táxi e assim que entrei o motorista arrancou ferozmente, as rodas deslizando, espalhando água para os lados.

O motorista parou na porta da minha casa. Ele acenou para mim, gesto de negativa ao me ver tirando a carteira do bolso.

– A corrida é por conta. Não posso cobrar, depois desse empurra-empurra. 

Senti um frio intenso ao sair do carro. Chovia fino agora, nuvens negras ainda provocavam a escuridão que confundia tarde com noite. Vi nos olhos de Cris a incerteza de quem se depara pela primeira vez com o risco inesperado da vida. Entramos em casa. Meus pais estavam fora.

– Preciso tomar um banho quente. – ela disse assim que pusemos os pés na sala.

– Vou pegar uma toalha para você.

Tirei as roupas molhadas no quarto, enxuguei meu corpo, vesti roupas secas. Um estranho silêncio tomava conta da casa. Ouvia-se apenas o barulho de goteira lá fora, tamborilar intermitente em cima de alguma lata no terreiro, ou talvez no teto de zinco da casinha de ferramentas de meu pai. Eu ouvia claramente outro barulho: o chuveiro ligado, imagem da água quente escorrendo pelo corpo de Cris.

Meu ouvido captava cada som dentro do banheiro. O barulho da saboneteira batendo no azulejo, o recipiente de shampoo sendo tirado e colocado no suporte, a pesada água dos cabelos caindo no chão, a torneira girando, cotovelos encostando nas paredes do boxe apertado, barulho de toalha secando o corpo, o trinco da porta sendo desfeito.

Cris apareceu no umbral da porta da sala, a toalha enrolada acima dos seios. Os cabelos molhados, a pele branca de seu rosto com sensação de alívio. Ela sorriu meio sem graça, deixando o frescor de sua pele úmida se espalhar pelo ambiente.

Restava apenas uma garoa da chuva. Enquanto Cris se vestia no quarto de minha irmã, cheguei até a janela do meu quarto. Dos telhados das casas vizinhas subia uma névoa, um tom londrino marcado pelas luzes do início da noite. A cena não lembrava em nada a assustadora tempestade.  Essa tarde enevoada de dezembro deixou em mim a imagem inelutável de Cris saindo do banho.

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